Um Sonho Nosso: de Cada Um
Gabriel Martins, que antes codirigira com Maurilio Martins No Coracao do Mundo (2019), agora sozinho na direcao volta a surpreender


No começo de Marte Um (2022), de Gabriel Martins, a notícia televisiva da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais brasileiras de 2018. A circunstância histórica é sutilmente encadeada com a história que se vai contar e os ambientes por onde esta história se passa. A narrativa de Marte Um é saltitante em seu início ao buscar pôr na tela um universo de classe média baixa do país que foi apanhada por aquilo que representava o novo governo brasileiro. Todas as personagens desta família que costura a reflexão de Marte Um são negras, todas estão só um pouco acima do limite de pobreza máxima de nosso povo. Mas, a despeito da citação inicial ao governo Bolsonaro que então dava seus passos introdutórios, o filme não liga as dificuldades de suas criaturas ao novo estado de coisas: este estado somente exaspera o que nunca saiu daquele lugar de lutas e incertezas. E, ainda que trate de pessoas negras, e porque ali todos são negros, a questão racial não se exacerba em sua visibilidade: são seres humanos simplesmente, com suas agruras e perplexidades.
Um pai fanático por futebol e pelo Cruzeiro de BH, Wellington, trabalhando para sustentar a família, pagar as contas. Uma mãe devotada e supersticiosa, Tércia. Uma filha que decide sair de casa para viver com sua namorada, Eunice. Um menino, Deivinho, cujo pai quer que ele seja um grande jogador de futebol mas o que o garoto quer ser é um astrofísico, algo que se materializa entre o natural e o delírio na sequência final em que ele apresenta à família o telescópio por onde se pode ver o planeta Marte. Nesta família de emoções mineiras, mas representativa de qualquer família brasileira, o roteiro de Gabriel Martins, com extrema felicidade, logra captar o sonho de cada um como um símbolo do sonho em si: o pai quer manter a família, a mãe quer ver a todos bem, Eunice quer sua felicidade afetiva e, entre o metafórico e o desejo concreto, Deivinho quer visitar um planeta distante.
Gabriel Martins, que antes codirigira com Maurílio Martins No coração do mundo (2019), agora sozinho na direção volta a surpreender o espectador pelo coeficiente de autenticidade com que encena o cotidiano à sua volta. Sem deixar de reflexionar, sutilmente, e dar visibilidade, sobre as relações nem sempre visíveis entre as questões sociais e políticas e este cotidiano tantas vezes já encenado.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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