A Descoberta da America por Antonioni

O olhar de Antonioni em Zabriskie Point e? minucioso e terrorista

27/06/2019 20:01 Por Eron Duarte Fagundes
A Descoberta da America por Antonioni

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Um belo dia o europeu Michelangelo Antonioni descobriu a América. Como um Colombo contemporâneo, Antonioni desembarcou na América nos anos 60 do século XX; e o ovo estava lá. A materialização desta descoberta foi o filme Zabriskie Point (1970), cujo lançamento no Brasil só se deu em 1980 (motivo: os escrúpulos da ditadura militar brasileira segundo os quais um cinema de rebeldia temática poderia insuflar as massas, mesmo quando se tratasse de um estilo de filmar como o de Antonioni, mais arredio ao grande público).

O roteiro de Zabriskie Point (coescrito com Antonioni por espíritos apurados como Sam Shepard, Tonino Guerra e Clare Peloe) pode parecer hoje ingênuo e até simplificador em sua oposição ao sistema; Zabriskie Point pode até ser tematicamente datado: seu libelo estudantil-juvenil contra o capitalismo, seu êxtase com o amor livre, sua ojeriza à autoridade policial, tudo indicando um conceito de esquerda típico dos intelectuais dos anos 60 e 70 e curiosamente vindo de um diretor de cinema que em suas fases anteriores se mantinha um pouco à margem dos questionamentos sociais mais diretos (embora ele os tangenciasse em obras como O grito, 1957, e O deserto vermelho, 1963). Mas Zabriskie Point é, em cada um de seus quadros cinematográficos, uma explosão da genialidade de Antonioni; estilisticamente é um filme atual e não obedece datas —ele recobre sua contestada visão europeia de América com sua habitual densidade metafísica de filmar e, contrariamente ao que se pensava nas décadas de 70 e 80, segue a estrutura reflexivamente lenta de seus filmes europeus, ainda que na abertura insira planos curtos e rápidos duma tão evasiva quanto explosiva discussão no campus universitário; mas se as frases (os planos) podem parecer trêfegos à primeira vista, a sintaxe (a forma como as frases se juntam) tem aquela contemplação antonioniana característica.

Poucas vezes se pôde ver num filme atores tão desglamurizados quanto Mark Frechette e Daria Halprin e que funcionasse. Parece que a qualquer momento suas aparições vão desabar dramaticamente, e talvez de fato desabem, mas isto não impede que Antonioni exerça sua potência formal, inclusive na direção de atores. Zabriskie Point, como é habitual em Antonioni, vive muito da caracterização dos cenários; como o alvo é uma crítica ao capitalismo, abundam diante das câmaras (que se movem agitadas) os painéis de propaganda que desde aquela época, ou bem antes, se tornou o impulso do consumismo ocidental.

O olhar de Antonioni em Zabriskie Point é minucioso e terrorista. No cerco policial ao campus ocupado por estudantes no início do filme o cineasta brinca com a percepção do espectador, refazendo um pouco do que ele já expusera em Depois daquele beijo (1967); num plano se vê Mark, o estudante, camuflado num canto, apanhar um revólver de dentro do calçado, no plano seguinte dá-se o estampido e a queda do policial aparecendo o policial no fundo do plano e o tronco do estudante escapando-se num difuso primeiro plano, criando a suspeita sobre Mark, até que mais adiante, numa conversa com Daria, no deserto, se revela que não poderia ser, o revólver estava descarregado. Daria é a burguesinha inconformista que parte com seu carro para o deserto americano, onde vem a topar com Mark, que roubara um aviãozinho e para ali rumara. No fim do filme o olhar terrorista de Daria (reflexo do de Antonioni) dispara contra os cenários do capitalismo, explodindo as coisas do sistema que se lançam no ar, numa sequência deslumbrante ao som de Pink Floyd, que parece ter tido sua inspiração nas imagens finais de Duas ou três coisas que eu sei dela (1967), do franco-suíço Jean-Luc Godard.

São várias as cenas antológicas de Zabriskie Point. Eu citaria mais uma. O amor livre no deserto. O ato amoroso de Mark e Daria se multiplica freneticamente e os diversos casais são acompanhados com exasperação pela câmara de Antonioni.

Outro dado interessante de observar é verificar, ainda e sempre, como a ficção de Antonioni carrega uma atmosfera documental de filmar. Mesmo que seguidamente o cineasta se desvie para uma fantasia crítica no primeiro plano, há uma sensação na sombra do plano duma documentação de filmar como se estivéssemos assistindo a um documentário das situações estudantis daqueles anos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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