Bob Dylan em Dose Dupla

Em parceria com o cineclubista e articulista gaúcho André Kleinert resolvi pensar sobre as razões e as desrazões dum Nobel de Literatura para o músico norte-americano Bob Dylan

29/10/2016 00:43 Por Eron Duarte Fagundes
Bob Dylan em Dose Dupla

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Em parceria com o cineclubista e articulista gaúcho André Kleinert resolvi pensar sobre as razões e as desrazões dum Nobel de Literatura para o músico norte-americano Bob Dylan. André, que conhece muito mais música do que eu, defende que está em boas mãos o Nobel Literário para um cantor, com argumentos diversos e extremamente sólidos. Eu penso diferentemente, por mais que adore as canções do hoje velho Bob. Abaixo, primeiro o pensamento de André; em seguida, o meu. É uma boa discussão cultural nestes tempos de marasmo e, muitas vezes, atrasos mentais. (Eron Duarte Fagundes).

 

UM NOBEL AINDA É MUITO POUCO PARA BOB DYLAN

Por André Kleinert

O significado da premiação de Bob Dylan com o Nobel da literatura transcende até mesmo as explicações protocolares da Academia. Não à toa, sua escolha gerou forte repercussão, tanto entre aqueles que a defenderam como entre aqueles que a repudiaram. Na verdade, tal discussão passa por uma definição que com o entrega do prêmio para o cantor e compositor norte-americano se tornou ainda mais difusa. Deve-se entender que um prêmio dessa natureza deva ser entregue para um autor que teve o grosso de suas publicações no formato livro e exclusivamente por seus méritos literários? Bem, se esses forem os critérios, até dá para concordar em colocar em dúvida se Dylan era merecedor da láurea em questão. Ocorre, entretanto, pelo menos no meu entendimento, que um Nobel de literatura extrapola as delimitações anteriormente mencionadas. No rol daqueles que receberam a comenda, pode-se perceber que em várias oportunidades foram levados em conta também fatores que não eram exclusivamente estéticos/estilísticos – considerou-se ainda o contexto histórico-político-social em que as obras de determinados escritores foram escritas e lançadas, o papel do autor como intelectual e pessoa pública dentro de um particular cenário cultural, a influência que ele exerceu sobre o seu público.

 Dentro dessa perspectiva mais abrangente do significado da concessão de um Nobel de literatura, mais se reforça a coerência da premiação de Dylan, pois ela tem uma função política forte. Dylan é um artista que surgiu nos anos 60, época de forte contestação sócio-política-cultural, e preservou tais traços até hoje em sua arte. O que dizer, por exemplo, da reflexão sobre a questão do racismo e da injustiça social provocada por uma canção como “Hurricane”? Esse perfil libertário e humanista do que ele compõe tem um caráter questionador em relação a um conjunto de valores e costumes que ganha ressonância até na nossa presente conjuntura mundial, cada vez mais marcada por opressão sócio-econômica e barbárie cultural. Outro aspecto nesse sentido é em relação ao próprio cenário eleitoral nos Estados Unidos: como o mesmo país que tem um gênio artístico como Dylan pode admitir a possibilidade de um obtuso preconceituoso como Trump ser o seu presidente? Essa premiação talvez tenha a intenção também de promover essa reflexão.

Se formos falar nos critérios artísticos, a escolha do nome de Dylan é perfeitamente compreensível. Além do fato dele contar em seu currículo com um livro de memórias extraordinário, “Crônicas”, indicado inclusive ao Pulitzer, a síntese de lirismo e lucidez à flor-da-pele de seus versos e prosa se espalham em diferentes veículos de expressão - canções, livros, entrevistas. Sim, entrevistas, sei que pode parecer estranho, mas há uma edição especial da revista Rolling Stone que traz todas as entrevistas que ele deu para a publicação e que trazem achados textuais preciosos, que fogem totalmente do padrão previsível de perguntas e respostas objetivas. Cada resposta do Dylan para as perguntas dos entrevistadores é na verdade uma digressão fascinante que mistura causos, divagações filosóficas, ironias, e que tem pouca coisa de concreta, como se cada colocação dele deixasse as coisas mais obscuras e poéticas ainda, reforçando a aura de mistério e beleza que envolve a sua obra. E a própria carreira artística dele é uma grande peça cultural, como se ele tivesse criado uma persona que se confunde entre o real e o imaginário. Dylan se reinventou várias vezes como cantor e compositor, fez escolhas aparentemente contraditórias que com o passar do tempo se revelaram com uma coerência brilhante. Há um filme sobre ele que consegue captar muito bem toda a ambiguidade genial que ronda a sua vida e arte, "Não estou lá" (2007). Aliás, a obra e a figura de Dylan são tão ricas que renderam material para outras produções cinematográficas antológicas como “Don’t Look Back” (1967) e “No Direction Home” (2005).

Na verdade, se um dia usarem esse Nobel como definição da importância de Dylan para a cultura mundial ainda assim será muito impreciso e reducionista, pois o alcance e complexidade do que ele produziu e dos efeitos que causou é ainda mais amplo do que essa efeméride. Por isso, aficionados por literatura, fiquem tranquilos, o prêmio está em ótimas mãos.

 

 

BOB DYLAN: AS CONVENIÊNCIAS DO NOBEL

Por Eron Duarte Fagundes

Arrepio-me diante da música de Bob Dylan. Comprazo-me com ouvi-lo tocar e cantar. Deslumbro-me constantemente com suas canções. Mas, agora que o Nobel, um tanto enfraquecido nesta época em que a literatura vai saindo de cena, resolveu faturar alguma fama em cima da popularidade de Dylan, devo dizer, honestamente, que sua abrangência literária é problemática . Há quem conteste, o que sempre me parece muito bom: a contestação. Me dizem que letra duma canção pode ser poesia. Juremir Machado da Silva, que curtiu a indicação de Dylan para o Nobel de Literatura, afirmando que estava ali uma quebra de moldura (e, de fato, estava), anotou: “A literatura saltou das páginas dos livros para as ruas, discos e outros suportes.” E acresceu: “A poesia de Dylan aparece em cada uma de suas composições.”

Em  sentido amplo, isto faz sentido: Dylan é um poeta da música; lembro que ele já foi comparado ao francês Arthur Rimbaud, o que literariamente é um exagero, mesmo que ambos sejam gênios, cada um em seu meio (quem não viu, deve procurar ver o extraordinário documentário que o diretor de cinema americano Martin Scorsese rodou sobre Dylan, No direction home Bob Dylan, 2005). Mas neste sentido amplo de poesia eu poderia incluir um quadro, uma sinfonia, um filme. Os roteiros do sueco Ingmar Bergman, por mais profundidade literária que tenham, fazem do cineasta um escritor? Ou se poderia aqui lembrar que tais roteiros só fazem mesmo um sentido pleno dentro do filme? É cinema: não literatura. Apesar das semelhanças. Como a canção de Dylan: a palavra numa canção é a mesma que vemos no corpo dum texto? Eu ainda prefiro o sentido estrito de poesia para lhe dar a alçada literária: tem de estar na página escrita, que pode ser até uma página de computador. Como escrita, eu não equipararia  Dylan a Rimbaud; mas os textos de Dylan buscam seu notável sentido na voz e nos instrumentos musicais, aí é que a coisa é mesmo maravilhosa e nada deve a Rimbaud.

A escritora caxiense Alessandra Rech, um dos melhores textos do Brasil de hoje, autora dum luminoso ensaio sobre Guimarães Rosa, Na entrada-das-águas; amor e liberdade em Guimarães Rosa (2010), editado pela editora da Universidade de Caxias do Sul, anotou em seu perfil no facebook: “Dar o Nobel de Literatura a Dylan é demonstrar mais uma vez a desconexão do nosso tempo com o livro. Há reconhecimento de sobra para a produção musical.” Estou mais próximo disto: Dylan é músico; se é escritor, não é para tanto.

Marcelo Miranda, crítico de cinema de Belo Horizonte, postou algo comemorando o Nobel de Dylan. Fiz um comentário simples à sua postagem: eu não daria o Nobel de Literatura a Dylan, lhe daria o Nobel de Música. Marcelo respondeu: “Rapaz, o Bob Dylan é tão acima de qualquer coisa que não vejo sentido nesta discussão. Só posso ficar feliz que você não era da comissão do Nobel.” Fiquei intrigado com a expressão “tão acima de qualquer coisa” e lhe disse que ninguém, nem Dylan, está acima de qualquer coisa. Ele me retrucou: “eu acho que alguns seres (bem poucos) estão acima sim.” Então é isto: Dylan é para os que o idolatram como Jesus Cristo para os cristãos, uma discussão que o questione (como esta, muito singela, de propor pensar sobre o que é e o que não é literatura, seja lá qual for a conclusão a que se chegue) é herética.

Mas inevitavelmente reconheço a importância da nomeação de Dylan para o Nobel de Literatura, ainda que, todos sabemos, esta nomeação (como se fosse um cargo administrativo) seja uma jogada macropublicitária para a Academia Sueca nestes tempos defasados: discutir o que é a natureza da literatura nos dias de hoje, até mesmo para discutir se isto de fato interessa ainda.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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