Crise de Tribunal, Crise Sentimental
Boa parte do bem sucedido da narrativa vem da dupla central de atores
Richard Marquand foi um diretor de cinema galês, cooptado para o cinema americano. Morreu cedo, aos 48 anos, de ataque cardíaco. Quando faleceu ainda estava em busca de seu caminho, entre a indústria e uma visão mais pessoal do fazer cinema. Mas pelo menos um de seus poucos filmes tem o condão de apaixonar o espectador, especialmente pelas seduções de sua linguagem cinematográfica. O fio da suspeita (Jagged edge; 1985) é uma narrativa policial —uma espécie de neonoir adaptado às formas dos anos 80, mas bastante acima da média do que se via na época— em que o pingar das imagens e das situações como que obedecem a um cronômetro — sem perder sua naturalidade ou inventividade originais.
A abertura do filme é uma contagiante sequência de câmara subjetiva em que a máquina de filmar (substituindo o ponto-de-vista da personagem do criminoso) sobe açodada as escadas interiores duma casa, criando movimentos turvos, sombrios e tensos para concluir-se com o ataque do homem mascarado à vítima. Após esta descrição inicial do crime que é o móvel narrativo, passa-se à história em que uma advogada (ex-promotora) é procurada por um acusado de assassinar a esposa para o defender no tribunal do júri. No fim do filme, a sequência da câmara subjetiva volta à cena, com a subida das escadas e o delírio mórbido dos movimentos da imagem; o desfecho difere: o assassino, esperado, é alvejado pela vítima, agora a advogada de seu caso.
As sequências de tribunal, habilmente construídas e montadas por Marquand, estão entre as mais notáveis da história do cinema. Incrustado em seu gênero de filmar, adotando as trivialidades habituais do cinema policial americano originário dos anos 40, O fio da suspeita se alça em função da estilização depurada de que se vale o cineasta. Cada cena parece muitas vezes uma aula de cinema.
Sutil e agudo ao valer-se de melodrama para o inserir na trama policial (a advogada se envolve, sentimental e eroticamente, com seu cliente, o que turba mais os complexos morais em que ela se afundara, por ter, alguns anos antes, como promotora, condenado um inocente que depois viria a ter provas de que não cometera o crime), Marquand constrói um modelo de cinema comum na América da década de 40 mas onde o alto refinamento o eleva muito acima de seus pares.
Boa parte do bem sucedido da narrativa vem da dupla central de atores. Glenn Close, especialmente, e Jeff Bridges chegam aqui talvez ao auge de suas capacidades interpretativas. Tanto Glenn quanto Jeff sempre foram, historicamente, mais estrelas que intérpretes, com trejeitos que muitas vezes atrapalharam a construção da personagem cinematográfica. Não é o caso em O fio da suspeita: bem dirigidos, eles chegam ao âmago dos seres que põem na tela.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br
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