Policial, Intelectual, Sentimental
O romancista japonês Haruki Murakami é um dos sucessos da literatura nipônica ao longo do século XX
O romancista japonês Haruki Murakami é um dos sucessos da literatura nipônica ao longo do século XX. Em 1Q84, Livro 1 (2009) suas referências literárias e artísticas parecem ser muitas. O título é uma deformação, entre irônica e sarcástica, ao clássico de Georges Orwell. A atmosfera tem muito de kafkiana mas se assemelha a certas melancolias esquivas encontradas no francês Michel Houellebecq, um autor posterior. A primeira citação estética é musical, e rara: no rádio do táxi em que Aomame, a distanciada e estranha criminosa do início do livro, vai como passageira, é informado ao leitor que se ouve a “Sinfonietta” do compositor Janácek. Só mais de cem páginas depois o narrador de Murakami explica-nos quem foi Leos Janácek.
A relação entre a partitura do tcheco e a personagem de Aomame é um dos trunfos da narrativa. “Quantas pessoas no mundo seriam capazes de identificar que aquela era Sinfonietta de Janácek, ouvindo os primeiros acordes? Provavelmente seriam ‘muito poucas’ a ‘quase nenhuma’. Por acaso, Aomame era uma delas.” Mas Aomame não é uma perita musical; é o acaso que faz dela um ouvido para Janácek. É o que pode acalmar sua turbulência, depois do instante do crime.
Mas 1Q84, Livro 1 traz também uma história paralela que não se cruza com a de Aomame. Tengo, um aspirante a romancista, é induzido e contratado por um editor para dar linguagem e corpo literários a um romance duma adolescente que tem bons elementos para o sucesso mas não apresenta esta linguagem e este corpo que pudessem favorecer a entrada do sucesso. A literatura como um charlatanismo formal?
No meio de toda esta arenga inquieta de Murakami há uma criatura secundária que fere fundo. É uma amiga de adolescência de Aomame: chama-se Tamaki. Esta menina é o lado infeliz que a ordem mais fleumática de Aomame rejeita; diante do possível choque com o mundo, experimentado pela fragilidade emocional de Tamaki, o coração de Aomame recua, de medo. Quem levou a este medo foi o suicídio de Tamaki, especialmente na forma do bilhete: “Todos os dias da minha vida têm sido um inferno. Mesmo assim, não consigo sair deste inferno. Se eu sair daqui, não sei direito para onde ir... Estou aprisionada num terrível sentimento de impotência. Eu mesma entrei nesta cela, tranquei a porta e joguei a chave longe.”
Navegando em círculos incompletos, Hurakami namora gêneros. O romance policial, misterioso e ameaçador. A narrativa intelectual, cheia de citações habilmente dispostas. O romance de educação sentimental: o aspirante a escritor Tengo nada entende do mundo, segundo sua amante casada, mas está escrevendo sobre o mundo— para aprender? Na verdade, como se expressa no final, “Tengo não tinha mais certeza em qual dos mundos ele se encontrava naquele momento.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br