Um Filme Estranhamente Belo
Aquilo que é sinuoso e docemente tristonho em Não me abandone jamais se transforma numa aguda reflexão sentimental
O diretor Mark Romanek nasceu em Chicago, nos Estados Unidos, mas, ao rodar na Inglaterra Não me abandone jamais (Never let me go; 2010) a partir dum romance do nipobritânico Kazuo Ishiguro (o mesmo de Vestígios do dia, que o americano James Ivory levou ao cinema em 1993) com elenco inglês, parte para uma narrativa pausada, tensamente reflexiva, utilizando com energia e transcendência as expressões e as entonações dos atores, criando entre as imagens uma estranheza que, apesar de nunca se esclarecer bem, é notavelmente bela em todos os seus signos visuais.
O ponto de partida de Não me abandone jamais mistura o realismo dum internato de jovens com o ultrarrealismo que estes internatos igualmente podem conter. Trata-se dum grupo de pessoas confinadas numa rígida escola britânica que são preparadas desde a infância para doarem seus órgãos visando a salvar outras pessoas doentes; a história aqui contada se parece um pouco com algumas alegorias metafísicas do ficcionista inglês E.M. Forster (talvez Forster, arriscando um pouco, possa ser uma das influências literárias de Ishiguro, respingando o efeito no filme de Romanek), mas a exacerbação do fantástico é mais sensorial aqui do que em Forster, um escritor que parece estar sempre pensando, mesmo quando recorre às perturbações mágicas da arte.
Aquilo que é sinuoso e docemente tristonho em Não me abandone jamais se transforma numa aguda reflexão sentimental. O triângulo formado por Carey Mulligan, Andrew Garfield e Keira Knightley (e formado com a excelência da sensibilidade dos intérpretes) toca o observador; mas o contraste com o malévolo contido das interpretações de Charlotte Rampling e mesmo Sally Hwakins transparece com grandeza na estética de encenação proposta por Não me abandone jamais.
Os diálogos e as situações expostas no roteiro de Não me abandone jamais são sempre dúbios: tem seu sentido evidente e seu sentido transcendente ou simbólico. O amor não salva os protagonistas no final! Porém, que significam as palavras amor, salvação, doação, adiamento no contexto da trama (a que aparece e a que subjaz)? Como no escritor tcheco Franz Kafka, podemos buscar na simplicidade cotidiana atmosferas aterradoras. Isto está presente ao longo de Não me abandone jamais: um pequeno pesadelo transparentemente kafkeano.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br