A Demência Vital Segundo Robbe-Grillet

Ma mente de Alain Robbe-Grillet, a que ao corpo deixou de corresponder, a libido transborda, e é esta libido que está nas páginas de Um Romance Sentimental.

21/07/2016 23:19 Por Eron Duarte Fagundes
A Demência Vital Segundo Robbe-Grillet

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O escritor francês Alain Robbe-Grillet faleceu aos 85 anos em fevereiro de 2008, esteve em meados dos anos 90 do século passado num Festival de Cinema de Gramado; embora tenha uma importância literária consistente dentro do movimento do Nouveau Roman, ao lado de gente como Nathalie Sarraute e Claude Simon, foi o cinema que lhe deu a celebridade mais evidente a partir da utilização de seu texto em O ano passado em Marienbad (1961), uma revolução cinematográfica de seu patrício Alain Resnais. Foi com este filme irreversível que os dois Alain, o Resnais (diretor de cinema) e Robbe-Grillet (escritor, apesar de também ter dirigido filme), passaram a ter a fama de malditos e ininteligíveis; amados pelos mais radicais e desprezados pelos que não simpatizavam com o experimentalismo intelectual em cinema.

Não sei se a sequência da biografia de Robbe-Grillet como escritor corresponde a este conceito inicial. Mas sua obra derradeira, Um romance sentimental (Un roman sentimental; 2007), publicado na França quando o autor agonizava de cirurgia em cirurgia, nada tem de ininteligível, embora se trate duma narrativa nova e inovadora, isto é, palpita e esperneia em cada uma de suas páginas. A clareza e as evidências do texto de Robbe-Grillet impedem qualquer aproximação com o experimental obscuro, que é onde se situa na verdade O ano passado em Marienbad; mas não se trata de uma objetividade obtusa, como requer a trivialidade contemporânea educada por Hollywood ou pelas tramas amorosas televisivas. Em Um romance sentimental pulsam aquelas metáforas francesas à Charles Baudelaire que transformam a arte de narrar em poesia extremada; a simplicidade dos enleios contados por Robbe-Grillet tem uma complexidade poética, o verbo do escritor está solto em sua faceirice e imagem, mas nunca é irresponsável, é rigor. Rigor de texto e de observações.

Partindo dos mestres do erotismo literário francês do século XVII, como Restif de la Bretonne e Marquês de Sade, Robbe-Grillet os supera porque agrega à documentação da inventividade sexual uma densidade que é verbal. É incrível a vitalidade da mente de um homem cujo corpo já estava indo para o espaço; nesta mente, a que ao corpo deixou de corresponder, a libido transborda, e é esta libido que está nas páginas de Um romance sentimental.

Ser capaz de imaginar estas coisas todas, aos 85 anos, já quase inteiramente comido pela doença, é uma destas coisas fascinantes da existência de um artista. E é também o ponto de rebeldia máximo de um espírito que não se conforma com os limites de decrepitude em que o destino o encerrou na matéria.

Porém, Um romance sentimental é um romance puro, decente. Sem embargo de valer-se do que hoje chamam pedofilia e sadismo, centrados nas relações ditas incestuosas entre um pai e sua filha menor, Um romance sentimental trata com uma certa pudicícia francesa os exageros sexuais; esta pudicícia, é verdade, está mais no texto do que nos assuntos abordados. Um romance sentimental erotiza o observador, mas o faz sem truculência: “Enfiavam na minha boca minha calcinha de infância, empapada de sangue, para abafar meus gritos, e chicoteavam minhas nádegas com uma correia dura que me machucava muito. Eu chorava de dor e morria de vergonha, enquanto o fluxo obsceno escorria por entre as minhas coxas.” Num tempo pan-sexual, Um romance sentimental acha sua própria medida de sexo. E pode-se dizer que Robbe-Grillet se despediu da vida fazendo sexo com uma de suas vestais, a literatura, em grande estilo. É uma epopeia do sexo digna de uma despedida.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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