Onde Est a Lngua Portuguesa?
Antnio Vieira, nascido em Portugal, brasileiro por grande parte das experincias de vida
Uma parte da língua portuguesa que aprendi a admirar está em Antônio Vieira, nascido em Portugal, brasileiro por grande parte das experiências de vida, mas cuja literatura é uma fusão destas duas pátrias: o rigor das estruturas lusitanas alargado por um barroquismo visionário brasileiro de orações ora longas, ora curtas, mas sempre encadeadas em parágrafos o mais das vezes extensos para dar a eterna impressão de orações eternamente longas. Os sermões de Vieira tornam agora a circular no Brasil graças ao empenho de Alcir Pécora e ao interesse duma editora menos badalada, a Hedra, de São Paulo. Um evento. Reler muitos sermões que foram lidos no passado e ler outros que não conhecíamos ou de que já nos tínhamos esquecido é um prazer cujo retorno não se rejeita.
“Já não digo como até agora: lembra-te, homem, que és pó levantado, e hás de ser pó caído: o que digo é: lembra-te, Roma, que és pó levantado, e que és pó caído juntamente. Olha, Roma, daqui para baixo, e ver-te-ás caída e sepultada debaixo de ti: olha, Roma, de lá para cima, e ver-te-ás levantada, e pendente em cima de ti. Roma sobre Roma, e Roma debaixo de Roma.” Está lá, no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, professado em Roma, na Igreja de S. Antônio dos Portugueses, no ano das graças de 1672. É assim que Vieira age com a linguagem: ora está sobre a linguagem, ora está debaixo da linguagem, mas é constantemente um pensador da língua, um homem onde as edificações sintáticas e morfológicas apresentam suas sinuosas razões de ser. Curiosamente, o grande orador sacro (o maior do gênero em nosso idioma juntamente com Manoel Bernardes, também padre) tem um objetivo muito prático com sua oratória: “Se com cada cem Sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo.” Vieira não me converteu senão ao gosto pela língua em que nasci. “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.” Em Vieira as palavras são ações, não o vento vazio; suas obras são os sermões, que estão no coração da língua e por isso, podem atingir o leitor.
“Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos.” Um orador incisivo, insistente. Um discursador que valoriza o verbo, a categoria de palavra que indica a ação. A árvore em Vieira tem e tem e tem. Reitera-se o “ter” quantas vezes surge a imagem duma coisa da árvore. A gramática sintética mandaria cortar os “tem” depois do primeiro. Vieira quer lembrar a cada curva da frase a necessidade de ter isto ou aquilo.
“A mim não me faz medo o pó que hei de ser, faz medo o que há de ser o pó.” A prosa de Vieira, passados tantos séculos e tantas modas de escrever, não se faz pó: ao contrário, levantou-se do pó em que o mundo em que viveu Vieira se mudou para continuar a bradar-nos com a força da língua que podemos amar. Desde que o leitor tenha a sensibilidade para a linguagem.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br