Há quem torça o nariz para seus arcaísmos de linguagem. Há quem não sinta qualquer emoção com o cartesianismo de sua sintaxe e a precisão clássica de sua construção narrativa. Mas o ficcionista mineiro Cyro dos Anjos é um escritor brasileiro de mão cheia. A menina do sobrado (1979) é um livro de memórias de grande beleza e outra profundidade, onde a vida do autor é pretexto para o retrato esplendoroso duma época fundamental da construção cultural brasileira, as primeiras décadas do século XX. Mais que no romance O amanuense Belmiro (1937), a obra mais aludida de Cyro, em A menina do sobrado a autenticidade estilística do autor se revela criativa, única, numa linguagem herdeira dos grandes clássicos mas em momento algum mofada ou estéril; apesar de estar sempre rondando o gênero, nunca é passadista ou anacrônico, é algo permanente, intemporal.

“Ao assentarmo-nos à mesa, havia sempre a louca esperança de que algum acontecimento viesse cancelar a malsinada leitura”. Este gosto por uma construção antiga, beirando o camonismo (“assentar-se à mesa”) é algo habitual ao longo dos textos de Cyro. Neste aspecto ele se aproxima um pouco de gente como José Geraldo Vieira, Cornélio Pena ou Lúcio Cardoso. Mas ao mesmo tempo seu realismo de cena é algo mais próximo do despojamento de Graciliano Ramos. E no entanto sua originalidade o diferencia de qualquer outro escritor brasileiro.

A menina do sobrado repassa excertos da vida intelectual, profissional, afetiva de Cyro. Na velhice, nosso escritor permanece o mesmo cronista-romancista da juventude. E é como se A menina do sobrado resolvesse os problemas literários que ficaram pendentes em O amanuense Belmiro. É um pouco como se a charada do primeiro parágrafo daquela novela de 1937 se transferisse metaforicamente para a confecção das memórias. “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, o nono, argumentando que esse talvez trouxesse uma solução geral.” Dá-se que A menina do sobrado é o nono chope da literatura de Cyro: onde ele topa a amada (que está no título do livro) e o modelo literário amadamente justo mas também rico.