Nosso Binômio Sexual

O binômio de gênero a que alude em sua leitura aparente Stella Manhattan traz, junto com as impurezas da mundanidade, as impurezas da língua para o universo de Silviano Santiago

18/07/2018 15:14 Por Eron Duarte Fagundes
Nosso Binômio Sexual

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O mineiro Silviano Santiago é uma voz de câmara dentro dos muitos barulhos que cruzam pela literatura de nossos dias. Mas esta voz de câmara está cheia de camadas secretas, que visam a revelar, por complexos signos literários, o interior do artista. Stella Manhattan (1985), seu romance mais solto e onde ele despoja o quanto pode o romancista do ensaísta, torna à cena cultural brasileira num momento em que os preconceitos recrudescem dentro da sociedade ao mesmo tempo em que a ferocidade e diversidade das redes sociais é um fenômeno de combate e embate que torna a luta bastante diferente do que tem sido até aqui. No prefácio para a atual edição do livro o autor busca unir algumas pontas de sua obra, vê em si alguém que quer “escrever a solidão amorosa que estoura no romance Machado (ou em Mil rosas roubadas)”, conduzindo assim os caminhos de Stella para águas que vão dar no mar atual de Santiago, o ensaio à romance, por mais que Stella pareça apartar-se disto. Para expor-se dentro da polêmica em atual, a orelha do livro traz considerações do escritor, professor universitário e político Jean Willys, cujas travessuras na mídia não traz relações com a discrição intelectual do ficcionista, professor e ensaísta de Minas; mas é dentro destes contrastes (um pouco artísticos, um pouco comerciais; penso que editor e escritor se unem no desejo de utilizar Willys na orelha) que Stella Manhattan pretende chegar a um público ledor mais multiforme.

Stella Manhattan traz em sua trama o binômio sexual entranhado no homem. Eduardo, o protagonista, é Stella: são dois em um. Stella liberta Eduardo de suas peias. O feminino liberta a prisão masculina. A literatura é no feminino: a arte é no feminino. Em Mil rosas roubadas (2014) a amizade intelectual tem algo deste binômio sexual: o homossexualismo que atravessa as páginas platonicamente —sem uma gota de esperma. Em Machado (2016), talvez o cume da arte do autor, esta atração entre homens permeia uma falsa relação filial entre Machado de Assis e Mário de Alencar, dois homens, histórica e esteticamente, distantes na história cultural brasileira. Tudo muito sutil, e no entanto abissal: vertigens. Stella Manhattan, relançado agora, parece, como aspira o escritor, um poste de luz apontando para as tergiversações do romancista no século XXI; o Santiago de 49 anos que escrevera Stella Manhattan é o profeta do Santiago de Machado e o leitor, tenha lido Stella em seu tempo ou somente agora, pode deslocar o livro cronologicamente. E lê-lo como um amadurecimento (prévio? antecipador?) das formas narrativas de um pensador-artista como poucos que habitaram as letras brasileiras nos últimos cem anos.

O binômio de gênero a que alude em sua leitura aparente Stella Manhattan traz, junto com as impurezas da mundanidade, as impurezas da língua para o universo de Silviano Santiago. Ele se despoja inteiramente do classicismo de escrever: ainda que tenha raízes clássicas. Em alguns momentos propõe delírios linguísticos babélicos. Espanhol, inglês e português se divertem. “Vira-se para mim e diz que na verdade sou eu quem tem razão e que você realmente não gosta de narrativas autobiográficas. Ficção é fingimento blá-blá-blá, o poeta, quem diria? É um fingidor. El poeta que-quaquaquaquá es un jodedor, eso si. A fucker. A motherfucker. Fode tão somente pelo prazer de escrever. Por isso é tão fodido. The novelist is a fucker who fucks only to be fucked. El novelista es un jodedor que fode só pelo prazer de escrever.” Ou uma escondida palavrinha francesa perdida no período: “o corpo atlético em forma, vestido e calçando como industrial reússi no mês de julho” (reússi, yes!: bem-sucedido).

Carregado de uma simulação do modernoso, daquilo que possa estar na moda, Stella Manhattan é na verdade um livro esteticamente permanente. Estes conflitos internos da literatura de Santiago se põem no gesto final de seu prefácio, presente quando ele quer que, após a leitura, seu livro “seja jogado para um canto”, à imitação do que sugeria o francês André Gide para o leitor de Os frutos da terra (1917), “quando me tiveres lido, joga fora este livro”. Este piscar de olhos travesso para o leitor e para o passado literário está atravessado por uma atualidade que parece nunca evaporar-se. Em Genealogia da ferocidade (2017), um ensaio de Santiago sobre Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, o escritor anota: “O romance de Rosa manuseia dicionários reais e estapafúrdios”. Em Stella Manhattan o que se manuseia é a vivacidade da língua como Santiago jamais logrou fazê-lo antes ou depois.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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