O Sotaque Único de Mário Palmério

O leitor identifica o som de seu texto ao deitar os olhos em quaisquer de suas linhas.

03/10/2014 09:48 Por Eron Duarte Fagundes
O Sotaque Único de Mário Palmério

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Um grande escritor é um criador de sotaque único na literatura. O leitor identifica o som de seu texto ao deitar os olhos em quaisquer de suas linhas. Reencontrar Vila dos confins (1956), romance sertanejo do autor mineiro Mário Palmério, que eu não relia desde a adolescência encantada de descobertas literárias, é dar de maneira indelével com esta constatação. Palmério vai ao interior perdido do sertão mineiro, usa e abusa do vocabulário e da sintaxe regionais, vale-se da arte de escrever como uma experiência mimética de linguagem para com as situações reais, (outro mineiro, João Guimarães Rosa, fazia o mesmo, mas os processos e o resultado do sotaque são outros), e de lá, da funda Minas Gerais, o que aparece nas páginas do romance é este sotaque inconfundível a que me refiro: uma beleza que poucas vezes a arte brasileira soube transmigrar da realidade.

Palmério utiliza muitos torneios metafóricos que remetem ao cenário desolado onde se passa a ação de sua narrativa. Uma profusão de vogais abertas e gestos largos das personagens dão o tom extrovertido desta riquíssima crônica de costumes que é Vila dos confins. Outro recurso estilístico que Palmério usa em abundância, sem cair no enfado, exuberando em criatividade e adequação, é a reiteração, a insistência numa palavra para dar o tom da cena. Exemplo clássico é o parágrafo de abertura do romance: “Sol já meio de esguelha, sol das três horas. A areia, um borralho de quente. A caatinga, um mundo perdido. Tudo, tudo parado: parado e morto.” A preguiça das vogais lassas (sol, esguelha, horas, borralho, caatinga) é reforçada por aquela frase final onde os vocábulos “tudo” e “parado” são repetidos: a repetição adequa-se ao sentido da cena, uma espécie de plano parado da hora da sesta, quando os sentidos dormem e nada acontece; observe-se ainda a repetição da palavra “sol” na primeira frase do parágrafo. Li este parágrafo a meus quatorze anos de idade e é uma das persistências mais notáveis de minha memória literária: trata-se de um de meus amores estéticos duradouros, este e outros parágrafos de Vila dos confins e o próprio romance como um todo.

Vila dos confins começa numa tórrida tarde de sol. E vai concluir na “noite fechada sobre aqueles ermos perdidos da caatinga sem fim.” Demais, a atualidade de Vila dos confins começa também em seu tema, a denúncia do coronelismo político do sertão brasileiro nos anos 50; porém, como se vê hoje, este troca-troca da corrupção não é privilégio de toscos interioranos, mas já está em palácio, na Brasília presidencial. Em Vila dos confins a avultada cena política não entorpece a verdade artística, que é o que dá riqueza à novelística ímpar de Palmério.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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