O Instituto da Escravido Entre Fronteiras
Com O Solo da Liberdade parece que Jnatas Marques Caratti dominado pelo mesmo impulso que o reconduziu de Porto Alegre, onde nasceu, para a fronteira: exercitar os contatos com as origens tnicas que sempre nos assombram e inspiram
Divisa das cidades fronteiriças de Rivera e Santana do Livramento.
Depois da montanha, já estamos no Uruguai.
Quantos pretos cativos transitaram nesta estradinha no século XIX?
Lá pelas tantas da introdução de seu livro O solo da liberdade (2013), o historiador brasileiro (sulista) Jônatas Marques Caratti anota: “Meu pai, Jorge Gonçalves Caratti, é natural de Dom Pedrito, mas viveu sua infância, adolescência e parte da juventude em Santana do Livramento. Desde pequeno, me acostumei a ouvir suas histórias sobre a fronteira.” Jônatas nasceu em Porto Alegre, aonde seu pai veio parar no início dos anos 70 em busca de emprego e condições de vida, mas, talvez apanhado pelo ímã original, acabou Jônatas voltando à fronteira, pois vive atualmente em Jaguarão, que é na verdade de onde emanam suas pesquisas iniciais que iluminam este seu livro de estreia, resultado de uma tese universitária feita não-somente com o raciocínio mas também com uma paixão narrativa genética (“desde pequeno me acostumei a ouvir suas histórias sobre a fronteira”) que certamente apanhará dois leitores em um, o interessado numa visão crítica do passado para clarear o futuro e aquele que adora escutar, como se estivesse na aldeia, as boas histórias dos antigos. Com O solo da liberdade parece que Jônatas é dominado pelo mesmo impulso que o reconduziu de Porto Alegre, onde nasceu, para a fronteira: exercitar os contatos com as origens étnicas que sempre nos assombram e inspiram.
No apêndice final do livro, para quem se dispuser a ler, munido das imagens que o autor generosamente oferece, o “Diário de bordo” em que Jônatas expõe a gestação de sua obra, apresenta uma fotografia d’antanho em que se vê seu avô Saldanha da Silva Caratti, nascido em Bagé, em 1910, filho duma liberta com um fazendeiro italiano, Vicente Caratti; Saldanha foi capataz da fazenda de seu pai italiano e teve por herança algumas casas em Santana do Livramento, onde o pai de Jônatas, filho de Saldanha, viveu até 1972, antes de vir para Porto Alegre. Quem está escrevendo estas linhas, e leu comovido o texto de Jônatas (uma comoção pensada, mas sempre comoção), não teve origem diversa: meu avô paterno era filho duma escrava negra com um fazendeiro no fim do século XIX nos desolados Campos de Cima da Serra do Rio Grande do Sul; informação: tenho pele clara, pois italianos e alemães se meteram nos cruzamentos que me geraram, mas meu pai era moreno escuro, daqueles que em São Francisco de Paula não entrava em baile de branco porque era negro, nem em baile de preto porque o tinham por branco. Enfim, estamos todos diante do dilema étnico apontado por Gilberto Freyre na abertura do capítulo IV de Casa grande & senzala (1933): “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo —há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil— a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”. Antes dele, Silvio Romero, no capítulo I de sua História da literatura brasileira (1888) havia escrito algo parecido: “Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias”.
O que faz recrudescer a originalidade, a perplexidade e a natureza íntima das assertivas de O solo da liberdade é o processo de escravidão na fronteira, o modo como os negros se moviam entre duas sociedades, as alternâncias geográficas e jurídicas nos espaços de dois países. Então os processos judiciais em torno do tráfico de escravos, como assevera a certa altura o narrador, mais do que revelações sobre a posição judiciária nos interstícios da escravidão no Direito Internacional, envolviam conflitos diplomáticos que atingiam a Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e a Banda Oriental do Uruguai: uma questão de autonomia nacionalista do pequeno país vizinho. É nesta busca da jurisdição (internacional) dentro de um solo que Jônatas vai topar o caminho da preta Faustina e do pardo Anacleto, dois exemplos do conflito de liberdade dos negros solapada pelos escusos interesses sul-riograndenses.
A questão negra no Rio Grande do Sul não tem sido muito abordada entre nós, um estado em que certas colonizações europeias (italiana, alemã) interpõem enfrentamentos étnicos exasperantes. Mas aqui e ali a investigação ocorre. Vinicius Pereira de Oliveira, em De Manoel Congo a Manuel de Paula (2006), que traz um subtítulo irônico e malandro, “um africano ladino em terras meridionais”, faz o relato de tráficos ilegais de escravos (o tráfico havia sido proibido no Brasil por 1850) na região de São Leopoldo, cidade gaúcha que passaria à história como incrementada por germânicos, ocultando-se, pois, a importância do trabalho negro no desenvolvimento do local. O jornalista e historiador gaúcho Juremir Machado da Silva, em História regional da infâmia (2010), utilizando um subtítulo já não irônico mas devastador, “o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários)”, monta uma trama investigativa onde levanta um véu sobre o racismo sul-riograndense, especialmente sob a forma de um de seus mitos mais famosos, a Revolução Farroupilha. Jônatas propriamente não ironiza como Vinicius nem se entrega a um panfleto poético como Juremir; talvez mais próximo do que eles do tema abordado, por uma etnia emocional (sei que é um instituto duvidoso que acabo de expor), o autor de O solo da liberdade persegue uma objetividade documental exemplar; em sua análise sobressai, mais do que a questão racial (que sem dúvida há ali), as circunstâncias econômicas, políticas, históricas, judiciais em que se vão dando as trajetórias das personagens, sejam elas as eleitas principais (Faustina e Anacleto) ou tantas outras secundárias. Mesmo assim, Jônatas não deixa de fazer aportar em seu texto um ou outro instante de mito coletivo abraçado pelo narrador: “Ainda nos dias de hoje, existe em Jaguarão um porto abandonado, que foi palco de embarques e desembarques de escravos, segundo contam alguns moradores. Nesse porto, há uma praça de correntes, construída como forma de lembrar o tempo em que havia escravos na cidade. Imaginação à parte, Faustina e Anacleto possivelmente embarcaram nesse porto quando foram levados por Manoel Marques Noronha para Pelotas, e por Manoel da Costa, marido de Francisca, para Rio Grande.” Imaginação à parte, vamos aos fatos, diz-nos o narrador, mas, diz também o narrador, os fatos acabam tendo existência somente diante da imaginação de quem os vê e conta. Esta a lição mais saborosa de O solo da liberdade.
P.S.: a) É curioso observar que apareceu este ano um filme americano dirigido pelo inglês Steve McQueen (não confundir com seu homônimo, famoso ator americano há muito falecido) 12 anos de escravidão (2013), onde também um negro livre num estado americano abolicionista foi sequestrado e vendido como escravo num estado americano escravocrata. Ressalvadas as essenciais diferenças históricas, geográficas, econômicas, as similitudes dos processos históricos sempre existem. O que ressalta aqui e ali é como as elites em todos os lugares e épocas se desvinculam das leis para satisfazer seus apetites.
b) “Tudo o que é interessante se passa na sombra... Não se sabe nada da verdadeira história dos homens.” Estas duas frases do escritor francês Louis Ferdinand-Céline estão na epígrafe de O queijo e os vermes (1976), do italiano Carlo Ginzburg. Confessadamente uma das fontes literárias de Jônatas em seu livro, a pesquisa de Ginzburg sobre o moleiro italiano Menocchio e seu enfrentamento com a inquisição são a base do método da micro-história em que Jônatas navega também. Antes de Jônatas e de Ginzburg, o francês Michel Foucault faria uma investida a-interpretiva (quase uma mera capitulação de fatos) para a micro-história em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão (1976), que seria filmado por René Allio com um rigor reflexivo extasiante: a história não existe senão como loucura e violência. Niilismo que Jônatas e, antes, Ginzburg rejeitam. De mim, sobram as proposições para reflexões: faço quase o papel do cineasta Allio.
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br