Passeio Com Herzog por uma Africa Secreta
Werner Herzog esteve no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, ao longo do mes de setembro de 2019
Werner Herzog esteve no Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre, ao longo do mês de setembro de 2019. No mesmo dia de sua participação no Fronteiras, deu uma palestra, para convidados da área do cinema, no Cinema Universitário/Sala Redenção, à boca da noite. Falou, em inglês, sem tradução, de sua maneira de fazer cinema, de sua coexistência com o cinema de Hollywood, de algo de sua experiência na América, especialmente quando teve de dirigir Nicolas Cage. Com seu humor teutônico e rigor conceitual, este alemão que atualmente vive em Los Angeles acendeu com sua conversa o gosto pela discussão cinematográfica. No texto abaixo minha reverência diante deste grande cineasta fazendo o que penso saber fazer, dissecar um filme, no caso o filme de Herzog que mais me encantou nas várias revisões que dele fiz: Fata Morgana.
Passeio Com Herzog por uma África Secreta
Houve época em que o cineasta alemão Werner Herzog era o garoto de ouro da crítica internacional. Seu prestígio se devia especialmente a Aguirre, a cólera dos deuses (1972) e O enigma de Kasper Hauser (1974); o primeiro, dotado de um extraordinário rigor formal, serviu de inspiração ao americano Francis Ford Coppola para rodar algumas cenas de seu polêmico Apocalypse now (1979); o segundo parecia uma resposta cerebralmente germânica ao sentimentalismo francês de O garoto selvagem (1970), de François Truffaut.
Mas, embora a excelência destas duas realizações (Aguirre e Kaspar Hauser), o melhor de Herzog está na sua obra mais radical, aquela mais próxima da seiva amadorística que inunda seus primeiros e libertinos anos: Fata Morgana (1969) é este filme que se vê e revê espantado diante da clareza e do vigor com que Herzog revoluciona os conceitos cinematográficos. Em Também os anões nasceram pequenos (1970) Herzog exacerba o sentido de grotesco de seu cinema. Em Coração de cristal (19767) o cineasta atinge o cume do excêntrico ao utilizar atores que interpretam sob hipnose. No entanto, é em Fata Morgana que toda esta radicalização de filmar chega a seu ponto mais equilibrado: a inventividade topa seu senso de linguagem.
Já a cena inicial exaspera e é revolucionária. Um aeroplano desce ao solo africano: Herzog repete muitas vezes as imagens da descida. Isto intriga o espectador: que quer dizer? O contato da civilização (o aeroplano) com a natureza primitiva (a paisagem da África como algo anterior à comunidade humana) seria mesmo difícil? Ou é o melhor jeito de filmar o que Herzog buscaria? Este procedimento, que no cinema de Herzog adquire contornos míticos, metafísicos, bíblicos, seria depois repetido bobamente por experimentalistas sem rumo nos anos 70, dos que filmaram na bitola Super-8 a alguns que ousavam jogar pela janela o dinheiro dos produtores comerciais da bitola 35 mm: Herzog rodou Fata Morgana, um dos mais belos filmes da história do cinema, de cima dum caminhão com uma câmara 16 mm. (Desconrtuindo Harry, 1997, um dos mais criativos trabalhos do norte-americano Woody Allen, abre sua narrativa com uma cena de repetição: a mulher cuja descida do táxi é filmada várias vezes. Ousadia de Allen num cinema já não tão secreto quanto a experiência de Herzog).
De uma certa maneira, Herzog executa com seu filme aquilo que a pompa visual de Stanley Kubrick se esforçava por levar ao cinema comercial em 2001, uma odisseia no espaço (1968): reflexões metafóricas da passagem do homem sobre a terra através das eras. Herzog divide sua breve parábola (78 minutos de projeção) em três partes: A criação, O paraíso, Os anos dourados. Há dois recursos de linguagem cinematográfica básicos no filme: o plano geral fixo e o travelling lateral —este dá-se ora para a direita (mais comum), ora para a esquerda, e a velocidade do movimento é variável, conforme o motorista de Herzog acelere mais ou menos seu caminhão. Cada parte tem uma voz-over que narra, fazendo com que as imagens se colem a um texto escrito de inspiração religiosa que busca reflexionar sobre a essência da evolução de um cenário-personagem até o contato com a presença do homem (Merece especial destaque a voz que narra a primeira parte, pois se trata da ensaísta Lotte Eisner —autora do essencial livro A tela demoníaca, 1985— que lê o texto meio obscuro do livro dos mortos dos incas; quando Lotte esteve quase para morrer, em 1974, Herzog fez a pé o trajeto Munique-Paris em honra da saúde de sua musa intelectual e relatou a experiência num opúsculo tão inquietante quanto seus filmes, Caminhando no gelo, 1978).
Fata Morgana é um cinema admirável, rico em seus símbolos, cheio de achados e referências. Como aquele patético casal de músicos populares dos anos dourados: a robotização do ser está nestas imagens fixas de Herzog. O travelling, que desde a criação se revelava o movimento do conhecimento, vai escasseando ao longo da fita dando lugar a planos estáticos: a última frase dita pela voz-over é significativa, “a terra estava estática de tanta paz”. É um cinema de pura criação, sem peias; mas é um daqueles filmes que, conforme certa vez observou o cineasta japonês Nagisa Oshima, seria melhor degustado pelo público se ele contasse com algumas informações, num folheto por exemplo: a origem do texto-over, o método de filmagem. Isto não desdoura a realização de Herzog em si, que vale por ela mesma, entidade criada à luz de um saber cinematográfico único na história; mas mostra que adições paralelas a obras de arte diferentes do habitual podem auxiliar na compreensão de um público desinformado e informado por aquilo que interessa à mídia.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br