A �frica M�gica de Mia Couto
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) � uma express�o densa da magia de escrever do mo�ambicano Mia Couto


Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) é uma expressão densa da magia de escrever do moçambicano Mia Couto. Quem narra o romance é na verdade uma espécie de veículo poético, um carro de metáforas, uma ambulância sintática que parece sempre atravessar alguma coisa, que pode ser uma floresta. Tudo isto está representando um homem que tem um corpo, uma comunidade que tem histórias. Mas no fundo o protagonista de Mia é puro verbo: ou verbo quase puro. Eis-me então como um signo que pensa o romance.
O título meio barroco do romance, mas não tão barroco quanto os mais recentes romances do português António Lobo Antunes, vai desviando o senso mágico que se abate sobre o leitor durante esta narrativa extremamente depurada e cheia de achados.
“Doença que lhe pegou com a idade. Começou por deixar de ver o azul. Espreitava o céu, olhava o rio. Tudo pálido. Depois foi o verde, o mato, os capins-tudo outonecido, desverdeado. Aos poucos lhe foram escapando as demais cores.”
O tempo em verbo flui; por isso é rio. A habitação é a terra. Como se no planeta os rios (que são a maior parte) fossem estradas: o homem em trânsito, dificilmente alguém mora no rio ou no mar. Chega-se à terra firme, onde habitamos. Chamamos tempo à água: ela vai passando. Chamamos terra à casa em que moramos: fixamo-nos.
Mia tece sensações. Perscruta sua estilização de escrever. Estuda as reações das palavras quando postas umas diante das outras. O cineasta francês Robert Bresson fazia algo parecido no cinema: reações de entre-imagens. Num determinado momento o narrador, apaixonado por livros, é confrontado com a forma como seus livros desapareceram. E lhe revelam que foi seu pai quem fez os livros desaparecerem. “Foi mesmo assaltado por súbita visão: ele esvoava, cruzando nos céus com outros homens que, em longínquas nuvens, também sobraçavam livros.” Um filho, um pai e entre eles, dividindo-os, os livros. “Você agora, deve ensinar o seu pai. Lhe mostre que ainda é filho. Para que ele não tenha medo de ser pai. Para que ele perca um medo ainda maior: a de ter deixado de ser seu pai.” Sabe-se agora que Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra é sobre estas relações ancestrais, os cruzamentos de gerações, e as toca magicamente.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Rubens Ewald Filho
Rubens Ewald Filho � jornalista formado pela Universidade Cat�lica de Santos (UniSantos), al�m de ser o mais conhecido e um dos mais respeitados cr�ticos de cinema brasileiro. Trabalhou nos maiores ve�culos comunica��o do pa�s, entre eles Rede Globo, SBT, Rede Record, TV Cultura, revista Veja e Folha de S�o Paulo, al�m de HBO, Telecine e TNT, onde comenta as entregas do Oscar (que comenta desde a d�cada de 1980). Seus guias impressos anuais s�o tidos como a melhor refer�ncia em l�ngua portuguesa sobre a s�tima arte. Rubens j� assistiu a mais de 30 mil filmes entre longas e curta-metragens e � sempre requisitado para falar dos indicados na �poca da premia��o do Oscar. Ele conta ser um dos maiores f�s da atriz Debbie Reynolds, tendo uma cole��o particular dos filmes em que ela participou. Fez participa��es em filmes brasileiros como ator e escreveu diversos roteiros para miniss�ries, incluindo as duas adapta��es de “�ramos Seis” de Maria Jos� Dupr�. Ainda crian�a, come�ou a escrever em um caderno os filmes que via. Ali, colocava, al�m do t�tulo, nomes dos atores, diretor, diretor de fotografia, roteirista e outras informa��es. Rubens considera seu trabalho mais importante o “Dicion�rio de Cineastas”, editado pela primeira vez em 1977 e agora revisado e atualizado, continuando a ser o �nico de seu g�nero no Brasil.

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