A Complexidade Intima em Carlos Saura

Costuma-se ver, historicamente, em Elisa, Vida Minha o ponto de mutacao do cinema de Saura

12/06/2025 01:58 Por Eron Duarte Fagundes
A Complexidade Intima em Carlos Saura

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À complexidade psíquica do roteiro do espanhol Carlos Saura para seu filme Elisa, vida minha (Elisa, vida mía; 1977) corresponde a complexidade da construção cinematográfica. As personagens de Geraldine Chaplin, a filha Elisa Santamaria, e de Fernando Rey, o pai Luis, são justapostas e misturadas desde o roteiro: são duas personagens que pouco a pouco se convertem numa só personagem. Luís, aparentemente, está fazendo anotações, ou escrevendo um romance, onde vários episódios buscam reconstituir em palavras a personalidade de sua filha Elisa, ao escrever assume o íntimo de sua filha; convivendo com seu pai, num lugar desolado no interior da Espanha, Elisa, vindo duma reiterada crise de seu casamento, transforma-se mais sutilmente ainda em seu pai, um professor que provoca seus alunos pequenos a uma representação da vida em sala de aula. Lá pelas tantas a distinção formal e material entre as duas personagens desaparece psiquicamente, são um só ser a certa altura.

No primeiro movimento do filme, um plano geral fixo acompanha um carro que cruza a planície até chegar diante duma casa, a voz de Fernando Rey diz um texto em que alguém fala da doença do pai e da necessidade de estar com ele, ao mesmo tempo em que se dá uma das crises de seu matrimônio. O movimento final de Elisa, vida minha repete o plano geral fixo do automóvel e põe sobre ele o mesmo texto, ou idêntico, com a diferença de que agora é a voz de Geraldine Chaplin quem faz a recitação. A história de Elisa (o contato com o pai, os problemas matrimoniais) tornam à sua materialidade original, a atriz Geraldine. No entanto, passados alguns anos da visão do filme, esquecidas as anotações feitas num texto como este, a memória das imagens e palavras dos planos (fixos ou delicadamente móveis ao som duma partitura de Erik Satie) de Elisa, vida minha se permuta dentro do espectador, tornando-se uma coisa inteiriça. O texto do início e sua repetição no fim aparecem, nas lembranças da visão do filme, como ditos por uma única personagem, que no fundo é a fusão de Elisa e Luís, com algo que penetra em nosso olhar desde uma concentração íntima que Saura obtém pela forma como os dirige, desde o interior de seus intérpretes, Fernando Rey e Geraldine Chaplin, autênticos donos deste espaço cinematográfico em que se move a alma mesmo de Elisa, vida minha, uma alma tão cinematográfica quanto extracinematográfica. No fundo, o texto no início dito por Fernando e este texto dito no fim por Geraldine têm proximidades de condução de voz que em nossa memória depois do filme (esquecidas as anotações feitas) não faz diferença (estética) sobre quem os disse.

Há mais, porém, nas complexidades elaboradas de maneira transparente neste filme. As aproximações entre a pequena Ana Torrent e Geraldine, algo que vem da obra anterior de Saura, Cría cuervos (1976). Em Elisa, vida minha Ana, de curtas aparições, é Elisa em pequena, e Geraldine tanto interpreta Elisa adulta quanto, em algumas cenas, a mãe de Elisa, uma delas abraçando-se e beijando o pai de Elisa, o que pode levar alguns espectadores a ver sugestão de incesto, pois Fernando é Luis, o pai, e Geraldine, nesta cena física, é mais a mãe, porém pode ser ainda a filha, Elisa, que convive com o pai na maior parte das sequências.

Costuma-se ver, historicamente, em Elisa, vida minha o ponto de mutação do cinema de Saura. Até Cría cuervos (1976) a encenação de suas histórias trazia colada uma alegoria sobre o franquismo. Morto Francisco Franco em 1975, fim do regime, Saura passava, em seu universo fílmico, a fixar-se na natureza humana. Elisa, vida minha é certamente o ápice deste olhar. Embora tenha feito logo depois um filme tão político quanto Os olhos vendados (1978), sua orientação estética se alterou em narrativas diversas (Depressa, depressa, 1978; Bodas de sangue, 1981; Doces momentos do passado, 1981). Num filme como O sétimo dia (2004) se aclarava o abismo em que, ao longo dos anos, seu cinema se metera, sem se tornar, no entanto, algo que não fosse bom de ver, pelo senso de cinema que traz. Revisitar de vez em quando Elisa, vida minha é necessário para ver a verdadeira dimensão deste senso de filmar.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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