O Lado Escuro da Cidade-Luz
Zazie no Metro visita varios excertos literarios, e o faz sem perder sua personalidade
Pode-se dizer que, pelo romance Zazie no metrô (Zazie dans le métro; 1959), o francês Raymond Queneau se prende à linhagem de François Rabelais (Gargântua e Pantagruel, 1552, creio que infelizmente nunca filmado, embora tenha dentro de si uma agitação pré-cinematográfica) e Louis Pergaud (A guerra dos botões, 1961, já filmado por Yves Robert e no mesmo ano de sua edição em livro): o grotesco erigido a uma estrutura de linguagem. Zazie no metrô foi um sucesso de livraria na virada dos anos 50 para os 60 e o prestigiado cineasta francês Louis Malle filmou a história de Queneau, causando igual sucesso nas salas de cinema da França; o sucesso não chegou a repetir-se nos Estados Unidos, levando a crítica americana Pauline Kael a lamentar as dificuldades do público de seu país com o humor muito francês de um filme que ela considerava de montagem mais avançada e influente do que aquelas executadas por outro francês, Alain Resnais.
O romance de Queneau é bastante mais engenhoso que o filme de Malle em termos de aventuras de linguagem; Malle fica quase somente no desbocado dos diálogos e na naturalidade das caracterizações; Queneau transforma estes elementos em questões estruturais de fato avançadas narrativamente, há um arrojo de experiências ignorado pela transcrição cinematográfica de Malle. Se a narrativa de Queneau foi bem recebida pelo leitor francês de seu tempo, isto se deve muito a uma identificação com o palavreado e as personagens suburbanas, tudo muito despudorado e provocativo; hoje esta plateia ampla de Zazie no metrô, o livro, pode surpreender tenha ocorrido no passado e dificilmente se repetiria, pois seu rigor de pesquisa formal o aproxima de certas experiências do irlandês James Joyce e do brasileiro João Guimarães Rosa, embora não sejam tão radicais as experiências de Queneau e tenham uma comunicação inventiva primeira mais próxima das ilustrações de sintaxe popular do brasileiro Mário de Andrade. Na verdade, estas referências que faço são vagas e imprecisas, indicam somente alguns caminhos assemelhados mas sempre com a seta pronta para virar em outra direção. Zazie no metrô é isto: disparates de intenções a que a arte de Queneau atribui uma unidade própria, única.
Zazie no metrô visita vários excertos literários, e o faz sem perder sua personalidade. No capítulo 11 o tio Gabriel refaz as discussões finais do “ser ou não ser” de Hamlet em Shakespeare. É um exercício curioso, um “hormossecsual” do século XX em que baixou o sombrio Hamlet. Queneau refaz a morfologia, a sintaxe e a ortografia, para no conjunto, como observou Roland Barthes, voltar à estrutura clássica de narrar: um Homero no subúrbio parisiense.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br