A Memoria nos Passos de Maigret
O belga Georges Simenon escreveu muito e mesmo assim seus textos exercitam um rigor despojado constante
O belga Georges Simenon escreveu muito e mesmo assim seus textos exercitam um rigor despojado constante. Sua literatura abdica tanto de gorduras frasais quanto de saracoteios intelectuais. Vai ao essencial. E o faz com magnífica grandeza.
Maigret na escola (Maigret à l’école; 1954) é uma de suas muitas obras-primas. Aqui, além de sua habilidade para a trama investigativa, que se constrói em raciocínios mas sem sobressaltos e artifícios fáceis, surpreende a introdução da técnica da memória no texto de Simenon. Não: Simenon não fará, como os intelectuais do nouveau roman, uma imitação rebelde de Marcel Proust; os adversários de Simenon podem negar-lhe tudo, menos a simplicidade —ou a natureza simples. E dentro desta natureza simples Simenon introduz as teias complicadas da memória. Mas não vemos as teias nem as complicações —vemos o processo mnemônico, natural, direto, em frases diretas.
O início é maravilhoso. “Há imagens que registramos de forma inconsciente, com a minúcia de uma máquina fotográfica, e acontece que, mais tarde, quando as reencontramos na memória, quebramos a cabeça para saber onde foi que as vimos.” Assim, muito dos gestos e passos de Maigret ao investigar o assassinato duma mulher em Maigret na escola são acompanhados por evocação da memória do próprio Maigret. Como a investigação se dá basicamente num ambiente escolar, o Maigret na escola tem duplo sentido: sua investigação atual numa escola e os tempos de Maigret escolar, que aparecem em sua memória quando certas cenas de hoje se assemelham às suas lembranças. Assim, ao interrogar um menino, Maigret diz: “—Quando estão juntos, eles falam em voz baixa? Trocam segredinhos, põem-se a rir ao olhar os outros?” É como se o escolar Maigret falasse pela boca do comissário. “Isso lhe veio de tão longe que ele se surpreendeu.”, anota o narrador de Simenon. Recalques da infância conduzem os passos do adulto. E assim seguidamente o infante Maigret invade o corpo do homem.
Um dado curioso da biografia de Simenon é a entrevista que ele deu ao cineasta Federico Fellini; ali Simenon afirma ter papado cerca de dez mil mulheres (O diálogo entre Simenon e Fellini poderia ser considerado hoje uma troca de banalidades entre dois machos machistas?). No entanto, ele não escreve como quem tenha chegado a tanto. Não porque se devesse esperar do escritor descrições de cama para comprovar sua assertiva. Simplesmente porque o tom miúdo de sua excelente prosa indica mais moderação que excessos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br