A Memria Que Me Contam
A cineasta Lucia Murat no deletou suas convices ideolgicas em A Memria Que Me Contam


"Para que tanta beleza?" - reclamou uma cineasta nativa desgostosa ante a riqueza visual de Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles. Talvez a noção-clichê de que filmes antenados a problemas sociais ou políticos exigem uma estética despojada também suscite estranhamento frente a A Memória Que Me Contam, oitavo longa de Lucia Murat. Guerrilheira em luta contra a ditadura militar, ela ficou presa e sob frequentes torturas por mais de dois anos.
A cineasta não deletou suas convicções ideológicas. Porém, sem esquecer traumas da guerrilha e da repressão em A Memória Que Me Contam, dramatiza seus reflexos nas figuras (ficcionais) de companheiros que reagem de formas diversas às mutações das últimas décadas. As armas de Lúcia Murat, na tela, são lirismo, intensa afetividade e irresistíveis emoções.
Quando uma militante quase lendária, Ana (Simone Spoladore), oscila entre a vida e a morte numa UTI, um grupo de companheiros compartilha a angústia e preenche o tempo de espera abordando temas que vão da liberdade sexual da nova geração às expectativas de mudanças no país e às inquirições sobre crimes cometidos durante o regime de exceção.
O roteiro foi buscar na realidade a personagem Ana. Seu perfil é inspirado em Vera Silvia Magalhães (1948-2007), cuja ações de rocambolesca ousadia desnortearam durante anos as forças do regime militar. Foi a única mulher no grupo que sequestrou o embaixador americano Elbrick para obter a libertação de presos políticos.
A maioria das ações transcorre em tom realista, mas sem preocupação com a continuidade temporal. O protagonismo da personagem que encarna as reflexões de Lúcia Murat, a cineasta Irene (de novo a atriz Irene Ravache, impecável) - que idolatra a ex-guerrilheira internada - é dividido com as aparições de Ana/Simone Spoladore. Em admirável invenção do roteiro, valorizado pela participação da romancista Tatiana Salem Levy, Ana ganha uma vida paralela em duas "dimensões": ora encarna idéias em flash-backs que não interrompem o tempo presente da narrativa (como Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman), ora se materializa em cena “atraída” pelas emoções dos que velam por sua sobrevivência. Em iluminada criação, Spoladore/Ana se desdobra entre afirmações de vida (esperança) e de morte. Seu desapego à vida pode não ser a negação de uma utopia (de Lucia/Irene e companheiros), mas, sem dúvida, soa como uma desilusão com os valores vigentes.


Sobre o Colunista:
Ely Azeredo
Ely Azeredo jornalista, crtico e professor de cinema. Escreve no caderno "RioShow" (O Globo) e no blog de cultura cinematogrfica cujo acesso : elyazeredo.com. Livros publicados: "Infinito Cinema", "Olhar Crtico: 50 Anos de Cinema Brasileiro" e "Jorge Ileli - O Suspense de Viver". Participou de edies sobre Hitchcock, Bergman e outros cineastas. Integrou o jri do Festival de Berlim. Criou o primeiro Cinema de Arte (RJ) e a revista "Filme Cultura".

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