O Desespero Metafísico

A abertura de O Amor à Morte (L?amour à mort; 1984), um filme do francês Alain Resnais vai atacar o espectador pelo sombrio, pelo tétrico, pelo mórbido

08/09/2014 09:51 Por Eron Fagundes
O Desespero Metafísico

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No primeiro plano (imagem de abertura) do filme —um primeiro plano (aquilo que os anglófilos chamam “close”) do rosto duma mulher— a situação já é tensa: a face angustiada dela e seus sussurros desesperados se misturam com gemidos e sussurros que vêm duma personagem que está fora do quadro; o enquadramento, a angulação da câmara e os gestos instáveis de vaivém da mulher criam uma relação de agressividade entre a máquina de filmar e a criatura, parece que a mulher está para invadir o lado externo do plano ou o contrário (seja lá o que for esse contrário), a lente vai machucar o corpo da personagem é o que pode pensar o espectador talvez tomado da mesma angústia da personagem. A abertura de O amor à morte (L’amour à mort; 1984), um filme do francês Alain Resnais inédito nos cinemas (comerciais ou alternativos) de Porto Alegre e repescado numa versão baixada da internet, vai atacar o espectador pelo sombrio, pelo tétrico, pelo mórbido, e dali não o retirará mais até o fim desta parábola sobre os mistérios da vida e da morte a partir dum amor exacerbado e dilacerante diante das perspectivas da separação pela morte.

Depois, o que se dá na seqüência da seqüência de abertura do filme de Resnais, é que o homem morreu. Sua amada telefona para o médico, esperançosa de que o doutor faça o moribundo viver. Depois de examinar o homem, o médico sentencia: ele está morto. A mulher desce as escadas: entra em pânico transido. Senão quando, olha para as escadas e vê seu amado descer, vivo. Erro de avaliação médica? Caso de ressurreição, como o Lázaro dos Evangelhos? Aí é que começa a reflexão simbólica de O amor à morte. A cabeça de Elizabete, a mulher da abertura do filme, começa a funcionar, como se a ressurreição pudesse talvez passar-se somente em sua desesperançada alma; mas há em cena o casal de amigos, Judith e Jerôme, que serve como um espelho e um contraponto para o casal central: enquanto Simon (o morto redivivo) secundado por sua amada Elizabete duvida da imortalidade da alma, Judith e Jerôme são pregadores cristãos.

O que seria uma fantasia metafísica se converte um pouco naqueles questionamentos religiosos tratados em certa época pelo dinamarquês Carl Theodor Dreyer e pelo sueco Ingmar Bergman. É claro que Resnais adiciona a isto suas inquietações formais, seus labirintos estéticos que incluem a inserção de planos-interstício ora formados por uma imagem escura ou cinza recheada de flocos brancos que passeiam despencando pelo espaço da tela, ora se resumem à escuridão da tela com agudez musical tétrica. Não se pode deixar de observar, todavia, que Resnais se aproxima de um tipo de “profundidade psicológica” um tanto quanto inusitada no universo do cineasta, e o mais próximo de O amor à morte estaria nos seres de Providence (1976).

(Depois de uma hora de filme, com o morto circulando vivo pelo cenário, Resnais repete a seqüência da morte, assim se detendo também no corpo do moribundo, que na cena inicial estava fora do quadro. E a morte vem: irremediável. E a mulher chama outra vez o médico. Não há escapatória: enterram-no. O pânico da mulher agora é eterno: os transes então passam a ter calafrios suicidas. Desesperada, ela estuda um meio de seguir seu amado no destino da morte. Assim a morbidez da narrativa completa seu ciclo: o suicídio, que talvez já estivesse na origem, no começo do filme, na morte de Simon interrompida pela ressurreição, passa a ser o centro narrativo e temático do filme. O suicídio é objeto do cinema intelectual: herança das idéias do pensador francês Albert Camus? O cineasta francês Louis Malle emprestou seu humanismo ocidental para o tratar em Trinta anos esta noite, 1963. O iraniano Abbas Kiarostami valeu-se dos ancestrais mistérios persas para aludir a algo parecido em Gosto de cereja, 1997).

E Resnais mantém, para justeza de suas intenções cinematográficas, um grupo de atores fiéis desde os anos 80 até hoje. Sabine Azema, com sua carga facial e vestindo cores fortes (um vestido vermelho, por exemplo), está soberba, invade-nos. Pierre Arditi compõe a melancolia terrível, mas também delicada: um instante trágico. Fanny Ardant, uma pastora clamando nas trevas, está notável, e é bom lembrar que na época a atriz estava casada com o cineasta francês François Truffaut, que padecia de grave doença e morreria pouco depois; um pouco do desempenho sentido de Fanny e a perspectiva mística que o atravessa passam pelas vivências de então com a doença do marido da intérprete de O amor à morte. André Dussolier fecha o quarteto com grandeza. E não se deve esquecer de Jean Dasté, na pele do doutor Rozier; Dasté no filme de Resnais parece uma homenagem ao cinema do clássico francês Jean Vigo por parte de Resnais, pois Dasté foi um jovem intérprete no filme dos anos 30 de Vigo.

Depois da estrondosa revolução formal de Meu tio da América (1980), a década de 80 foi um tempo em que as relações do cinema de Resnais com os analistas não foram boas. Disseram que A vida é um romance (1983) esquecia o essencial: cinema não é um romance. Mélo (1986) foi acusado de encenação teatral pouco inventiva. Eu quero ir para casa (1989) foi tido por trivialidade desnecessária. Pode ser. Mas os anos reservaram a este discreto e pouco referido Resnais, O amor à morte, uma visão profunda que agora pode ser resgatada. E não é por acaso que o narrador criado por Jean-Claude Bernardet para sua novela A doença, uma experiência (1996), ao citar O amor à morte, fala de Resnais como “seu filósofo favorito”.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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