O Curto-Circuito Emocional

Da Vida das Marionetes pertence a fase psicanalitica do cineasta, iniciada propriamente com Cenas de um Casamento (1973)

02/05/2025 02:49 Por Eron Duarte Fagundes
O Curto-Circuito Emocional

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O roteiro de Da vida das marionetes (Aus dem Leben der Marionetten; 1980), filme do sueco Ingmar Bergman, roteiro publicado entre nós nos anos 80 pela Nórdica, começa pelo depoimento do psiquiatra Mogens ao inspetor de polícia sobre o paciente Peter Egerman, acusado do assassinato duma prostituta. O filme na tela começa pela sequência do encontro de Peter com a prostituta Ka, os vaivéns, o mal-estar de Peter, o desenlace trágico do crime: é uma cena em cores, que se concluirá em preto-e-branco com Peter atônito diante do cadáver de Ka; o filme será todo em preto-e-branco, rigoroso e austero, voltando as cores somente nas imagens finais, quando Peter está na prisão ou num manicômio e Katharina, esposa de Peter, recebe de alguém informações sobre a situação do paciente criminoso. Ao longo de seu desenvolvimento, Da vida das marionetes é costurado por depoimentos de pessoas das relações de Peter ao chefe de polícia: ele começa ouvindo o psiquiatra, ouve a esposa (com quem o médico chega a ter um flerte sem chegar a vias de fato por hesitações dela), a mãe, o amigo homossexual (cujo desabafo sentimental em longo plano fixo é um dos instantes mais soltos desta dura aventura íntima de Bergman). O retrato de alguém não somente pela ação de que foi capaz mas também pela visão que os outros têm dele, tudo visando a tentar desvendar por que uma pessoa, em determinado instante, sofre um curto-circuito cerebral, como anota Bergman em seu roteiro, e faz coisas desatinadas que fogem a sua biografia.

Da vida das marionetes pertence à fase psicanalítica do cineasta, iniciada propriamente com Cenas de um casamento (1973). É deste filme do início da década que Bergman retira duas personagens, Peter e Katarina, para trazer à linha de frente do novo filme do fim da década. Diz Bergman que pretendia dar-lhes mais espaço em Cenas, mas Johan e Marianne tomaram conta. Chegou a escrever um roteiro que naufragou. E finalmente as criaturas chegaram a organizar-se num roteiro que virou filme: Da vida das marionetes. O que ocorre no filme é que Peter e seu desatino ocupam o primeiro plano, e a catástrofe matrimonial de Peter e Katarina submerge como uma das explicações para o ato demente de Peter. Há a loucura conjugal, descrita em alguns diálogos e imagens, em enquadramentos que abstraem os cenários para se deter aqui na secura dos atores, menos brilhantes (do ponto-de-vista da interpretação) que em boa parte dos filmes de Bergman, cheios de achados de intérpretes. Algumas chaves: a meretriz assassinada tem o mesmo nome da esposa de Peter, Katarina, o que indicaria no crime uma tentativa do homem de sublimar o desejo de matar a esposa; o ator Walter Schmidinger (o amigo homossexual do casal e que trata Katarina, sua esposa, como seu confidente, algo na época bastante comum, as ligações afetivas dos homossexuais com certas mulheres) se parece com o realizador Bergman fisionomicamente, o que apontaria para coisas subterrâneas no próprio íntimo do cineasta (anotou o crítico Tuio Becker num texto da Folha da Manhã de 16.07.1981: “Bergman talvez também o seja, como tantos outros cineastas, conflituados com o problema da criação artística, da vida e em especial, freudianamente, da sua sexualidade”).

Pela mesma época, um filme brasileiro, Ato de violência (1980), de Eduardo Escorel, enveredava por uma trama assemelhada: no espaço de dez anos, a personagem de Nuno Leal Maia assassinava duas prostitutas, também movido por um incompreendido curto-circuito no cérebro. Mas se Escorel é vago, esquivo e sutil em suas encenações, os questionamentos de Bergman buscam enquadrar certas conclusões na natureza psicanalítica em que então seu cinema mergulhava. Em Escorel imperava algo de Dostoievski, de que Bergman esteve mais próximo em Gritos e sussurros (1972). No Bergman de Da vida das marionetes o que temos é uma meditação, fechadíssima, cartesiana: Descartes.

P.S.: Curiosidade. O roteiro publicado não descreve o crime, que é a cena que abre o filme, talvez tenha sido só a improvisação cênica do filme. O roteiro é feito quase somente dos depoimentos, de ações laterais e da cena com a prostituta antes do desenlace  que Bergman chama “catástrofe”.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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