Autran Dourado: Fazendo e Ensinando
A Barca dos Homens se trata de um evento estetico que exala muita vida
(Texto originalmente escrito em 17.09.2006: um texto de gaveta agora publicado)
Reler o mineiro Autran Dourado permite ao leitor um contato com um dos imperadores da língua portuguesa no século XX, um dos mestres de nossa ficção ainda vivo. Uma poética do romance (1976) pode ser tachado de ensaio, pois teoriza todos os elementos de construção dum romance, mas às vezes se assemelha mais àquilo que Dourado sabe fazer melhor, criar uma história enovelada em palavras, algo mais próximo do que fez o inglês Edward Morgan Forster (Aspectos do romance, 1969) do que daquilo que apresentou o peruano Mario Vargas Llosa (A orgia perpétua, 1975). Dedicado ao paulista Antonio Cândido, o Papa de nossa crítica literária, o livro de Dourado se autoalinha, já em seus parágrafos iniciais, ao lado do primeiro depoimento do cearense José de Alencar em Como e por que sou romancista (1893); buscando referências num romancista fora de moda e execrado desde os modernistas, Dourado, um autor cuja contemporaneidade de linguagem é um dado, ousa desafiar o conceito prévio de que um romântico como Alencar está ultrapassado.
Um dos centros de rebeliões estilísticas de Dourado como teórico em Uma poética do romance é a valorização do lugar-comum exacerbado, começando por uma crítica dos excessos estilísticos do autor mineiro Cyro dos Anjos nas sucessivas reedições de O amanuense Belmiro (1936); chega a aduzir que certas obras deveriam ser tombadas para evitar que seus autores, ainda vivos, a adulterassem. Um exemplo maior da busca do lugar-comum dentro da linguagem comum é A barca dos homens (1961), um delirante afresco que busca captar vozes singelas, populares; é um romance que solta o verbo, que se reorganiza em sua aparente desorganização, em seu barroquismo verbal desenfreado topa o ponto que a sensibilidade do narrador (dirigindo os sub-narradores) determina. Não surpreende que, conforme Dourado em Uma poética do romance, o escritor mineiro Fernando Sabino, numa leitura crítica prévia, queria reduzir A barca dos homens em cerca de 1/3: julgando que o romance de Dourado se tornava repetitivo e eivado de lugares-comuns, Sabino queria fazer da narrativa difusa e tentacular de A barca dos homens um relato despojadamente jornalístico, como costumam ser os textos do próprio Sabino. Ainda bem que Dourado resistiu: poucos romances brasileiros captam tanto o ferver da vida quanto A barca dos homens em sua linguagem sem peias, em sua estrutura aparentemente desajustada.
Desorganizar o mundo para reorganizá-lo numa nova montagem, eis o que é A barca dos homens, com seus símbolos, com sua diversidade de linguagens, com seus ecos diferentes de vozes: “O dia custou muito a nascer.”, assevera o narrador central lá pelo final. “As luzes da cidade acendiam-se. Os homens vivem lá em baixo, uma vida fervilha aos seus pés. São como bichinhos a se moverem, como pequenas formigas em correição carregando pedaços de folhas.”, sussurra outra voz intermediária da narração. O sol nasce, as luzes iluminam a vila, A barca dos homens é um evento estético que exala muita vida; foge da frieza da literatura pura, porque fugiu duma sobriedade que castra as impropriedades do verbo que todos temos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br