Poucos escritores de hoje têm o poder da literatura exibido pelo autor mineiro Autran Dourado. É preciso recorrer aos suprassumos da ficção ocidental para topar estas virtudes de narrador, recriador de ambientes e articulador sintático que em Autran Dourado aparece com tanta naturalidade quanta criatividade. Ópera dos mortos (1967) é provavelmente seu romance mais denso, mais agudo em suas notas, cujo barroquismo elaborado não oculta as origens populares do tom verbal e da sintaxe; é bem verdade que O risco do bordado entrepõe cruzamentos bastante complexos e Uma vida em segredo é uma simplicidade trabalhada que remete a Ernest Hemmingway, mas Ópera dos mortos vai além, vai ao interior profundo das Minas Gerais para extrair mais um desconcertante retrato interiorano, uma composição de caracteres e situações tão verdadeira quanto mítica.

Mineiro como João Guimarães Rosa, cuja aproximação crítica ele já rejeitou em um ensaio, Autran Dourado está longe das experimentações linguísticas do outro, mas sua lenta construção duma linguagem é tão única e criativa quanto a de Rosa: mergulhando ambos no universo da Minas caipira (a singeleza de Rosalina, a figura central de Ópera dos mortos,que o afirme), o que sai tanto de Rosa quanto de Dourado é o poder literário, a força invasora do verbo, as magnitudes do barroco português, este mesmo barroco que do orador sacro Antônio Vieira ao ficcionista luso António Lobo Antunes tem proposto maravilhas na língua.

Me parece que Ópera dos mortos circunda certos volteios mais terra-a-terra para logo ali dar o bote da grandiloquência mítica. Com o rigor e os ajustes que um mestre de narrar sabe fazer.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)