O Jorro das Palavras
Definido como poema no subtitulo, este novo romance de Lobo Antunes se trata de um arrojado edificio verbal
Minha descoberta da literatura do português António Lobo Antunes deu-se, faz mais de vinte anos, pela leitura de seu décimo sexto livro, que traz um título identificador do barroquismo perplexo de sua linguagem: Não entres tão depressa nessa noite escura (2000). Não ter lido antes um autor de tanto vigor narrativo e que publicava suas obras fazia mais de duas décadas era um atraso de leitor, que pode ocorrer mesmo àqueles que têm o vício de ler misturado ao sangue; a surpresa para este neófito em Lobo Antunes é muita, ainda que já tivesse ouvido a amigos referências sobre o tormentoso proceder literário do escritor. A edição que tenho é portuguesa, buscada numa das andanças como rato de livraria.
Definido como poema no subtítulo, este novo romance de Lobo Antunes é um arrojado edifício verbal que desafia as classificações. Romance-poema, com suas imagens surpreendentes, sua estrutura frasal de caleidoscópio vertiginoso: frases longas que se interrompem abruptamente requerendo seguimento mais adiante ou abdicando deste seguimento para impor novos rumos à conversação. Uma zoeira vocabular toma conta deste jogo que nada fica a dever aos mais inventivos e pensados romances do século XX, como O jogo da amarelinha (1963), do argentino Julio Cortázar. Se seu mestre francês Louis Ferdinand Céline (a quem ele se declarara certa vez de ser comparado) abusa desesperadamente da gagueira das reticências, Lobo Antunes entrecruza cenas e parágrafos que suspendem o pensamento pela simples mudança de linha, como num poema.
Riquíssimo do ponto de vista estrutural, Não entres tão depressa nessa noite escura é uma filigrana de recursos narrativos. Chega a valer-se do método da não-pontuação, como no francês Claude Simon. Evitando o ponto final senão ao término dos capítulos (se não falha minha memória, há um único parágrafo de exceção a esta regra), Lobo Antunes revela aqui algo que ele tem exposto em entrevistas: a influência do cinema, com suas teorias da montagem, sobre um homem de letras do século XX.
“O meu pai dois meses antes de
Como se quem escreveu achasse supérfluo terminar a frase limitando-se a juntar-lhe uma página de jornal com uma participação de morte que não referia parentes, só o apelido igual ao meu”
Formalmente um verdadeiro achado para a mesmice dos textos contemporâneos, Não entres tão depressa nessa noite escura faz o leitor crítico tornar às primeiras e mais fecundas décadas da literatura de ficção do século XX. O convite de Lobo Antunes para que entremos devagarinho neste sinuoso caminho de sombras de sua prosa é sedutor como poucas obras o serão na arte do final do milênio.
“Há momentos na vida em que necessitamos tanto de um sorriso. À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro.”
Não entres tão depressa nessa noite escura é, para o amante de literatura, este sorriso vital que lhe permite tocar-se como se estivesse tocando sua própria imagem. Composta como partes que corresponderiam aos dias da criação do mundo (as epígrafes bíblicas que surgem intersticialmente não são casuais), esta obra-prima de Lobo Antunes é uma das ambições bem-sucedidas de revolucionar a arte da palavra nas veredas dos anos 2000.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br