A Plastica da Loucura

Imagens do Inconsciente eh uma narrativa carregada pelo texto da psiquiatra Nise da Silveira

28/10/2019 18:32 Por Eron Duarte Fagundes
A Plastica da Loucura

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O último filme do diretor brasileiro Leon Hirszman, Imagens do inconsciente (1983-1986), é o ponto nevrálgico de todas as investigações de sua filmografia. Diz-se que, logo depois deste trabalho e pouco antes de contrair AIDS que o mataria em seguida, Leon confessara, entre seus projetos, filmar o romance Angústia (1936), de Graciliano Ramos. Talvez esta visita cinematográfica ao universo de abismos escrito por Graciliano fosse um pleonasmo retórico diante de Imagens do inconsciente, que é ao mesmo tempo a angústia em imagens e o desespero do artista (isto é, Leon) diante do que viria em sua vida e ele mal poderia suspeitar naquele momento vital: a AIDS, a morte.

Imagens do inconsciente é uma narrativa carregada pelo texto da psiquiatra Nise da Silveira, que nos anos 40, no bairro do Engenho de Dentro no Rio, buscou, sob a luz de Carl Jung, com quem ela estudou na Europa, humanizar as relações da psiquiatria com os pacientes; Nise criou o Museu de Imagens do Inconsciente, que ainda hoje existe no Engenho de Dentro. Os textos de Nise são ditos por Ferreira Gullar e Vanda Lacerda. Hirszman, hábil em montar com rigor cinematográfico as imagens de um filme, se vale da palavra e das ideias de Nise, da voz de seus narradores e da presença cênica de seus artistas marginais e esquizofrênicos para produzir uma obra complexa, problematizante, sempre em crescimento com o passar das décadas. Nise é o cérebro transformado em cinema pela arte de Leon; as criaturas reais antes trabalhadas por Nise e agora diante das câmaras de Leon são peças duma plástica de dialética cinematográfica que aos poucos adquirem uma coesão de intenções e formas que impressiona.

Documentário sobre as relações entre a arte e a loucura, uma tentativa de, pela mente da psiquiatra junguiana, achar as pistas da demência naquilo que a arte oferece ou materializa, Imagens do inconsciente funde-se também na estrutura ficcional, sem as reiterações intelectuais do alemão Alexander Kluge ou as experimentações gaulesas de Alain Resnais; é uma forma brasileira —moral, esticamente— de encenar tudo isto. Esta fusão não é somente porque o ator Joel Barcelos interpretou Carlos Pertuis, falecido em 1977; é uma fusão da natureza do filme, onde a verdade (o documentário) precisa ser reencontrada (reencenada), para ser mais bem atingida.

Imagens do inconsciente é uma espécie de tríptico. No primeiro filme que o compõe, Em busca do espaço cotidiano, Leon debruça-se sobre o pintor e escultor Fernando Diniz. “O pintor é feito um livro que não tem fim”, diz o texto lá pelo fim, na voz do artista esquizofrênico. Numa cena, sobre imagens atuais de garotos pobres, jogando bola de gude, os quadros fechando o ângulo sobre os corpos das pessoas, Diniz, em voz-over, discorre sobre si mesmo, um menino pobre e negro que um dia se apaixonou pela filha do patrão de sua mãe e, ao ser esquecido por ela, descobriu a frustração de classe social. Esta frustração se acentua quando desvenda, em suas lembranças, que um irmão branco, fruto dum amor fortuito de sua mãe com um indivíduo branco, desapareceu num sanatório sem deixar rastros. Diniz fala duma “sabedoria que a gente não sabe”, o que quer dizer, a sabedoria instintiva.

O instinto reprimido é o centro do segundo filme, No reino das mães, que trata da pintora Adelina Gomes. Adelina, na adolescência, se apaixonou: o homem não foi aprovado por sua mãe. A vida seguiu. Mas logo a adolescente tornou-se mais retraída, estranha mesmo. Até que um belo dia estrangulou uma gata da família de que todos gostavam (inclusive ela). Acabou internada. Nove anos depois, quando começou a pintar no ateliê de Nise, Adelina pintou uma gata-mãe, com tetas cheias de leite. Marcada pelo terror da mãe, Adelina tem entre seus desenhos figuras de mães com cabeças de cão. Em busca do instinto sexual brecado muito cedo, Adelina morreu antes da finalização do filme, em condições trágicas.

O filme (ou episódio) derradeiro analisa a trajetória de Carlos Pertuis. A dimensão mística do artista permite, neste passo, a Imagens do inconsciente afastar-se bastante do documentário puro; é um enlevo de imagens e sons, com as reflexões textuais e as vozes de Gullar, no começo, e Vanda, por quase todo o espaço do filme. Pertuis foi internado aos 29 anos, como esquizofrênico, começo do século XX, quando exclamou para a família que vira o planetário de Deus. Anos depois, ele pintou o tal planetário, uma forma estelar encabeçada por uma espécie de manta vermelha. Carlos usa muitas lendas arcaicas e um de seus signos devastadores é o cruzamento de serpentes, talvez o mal cruzando-se pelo mundo. Carlos, ainda na pele do intérprete Joel, parece-se muito com o delirante místico de A palavra (1955), filme do dinamarquês Carl Theodor Dreyer: inunda as cenas de seu misticismo arrebatador.

Vendo, revendo, alimentando-se de todos os excertos de Imagens do inconsciente, pode-se afirmar, com Ferreira Gullar, que aqui “o universo de Leon se ampliou e enriqueceu, estética e filosoficamente.” Uma obra em crescimento: como suas personagens.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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