A Precisão Plástica em Oshima
O túmulo do sol é uma narrativa de seu tempo que tem o condão de atravessar as décadas e, quiçá, os séculos
Nagisa Oshima é um dos grandes mestres do cinema, profundamente japonês, mas capaz de alçar-se à admiração ocidental pelas elevações estéticas de sua arte. O túmulo do sol (Taiyô no hakaba; 1960) é uma obra-prima de seus inícios e de cara identifica —no jeito e na reação das personagens e nas situações narrativas — estas peculiaridades nipônicas que causam estranheza ao público de cá que todavia se enleva diante das imagens, precisamente belas, armadas por Oshima. O brasileiro Walter Lima Jr., que depois se tornaria um prestigiado cineasta, em seus tempos de crítico de cinema anotou, num artigo de setembro de 1961: “É uma grande realização do cinema japonês, infelizmente distante do nosso sentido de observação, do nosso público.”
A sequência final de O túmulo do sol —a que sucede à do incêndio na mansão suburbana de tráfico e crime— abre com um plano do rosto da atriz Kayoko Hanako em que a intérprete olha para o lado; a câmara capta justamente este gesto, olhar para o lado. O plano seguinte mostra seu olhar para a câmara. O terceiro plano da sequência abre a angulação da câmara: é um plano geral do cenário destruído pelo incêndio. Os sintagmas da linguagem cinematográfica de Oshima então se esclarecem: antes, quando só vemos a atriz desviando o olhar para seu flanco esquerdo, a personagem na verdade estaria olhando para o cenário destruído; no momento em que a intérprete nos fita, separada pela câmara de filmar, a criatura de ficção que ela vive está mirando um interlocutor (diegeticamente). E o que Oshima capta nestes cruzamentos linguísticos é uma melancolia devastadora após filmar a crueza da delinquência juvenil coordenada por gangues num gueto de Osaka, no Japão.
Estupro, tráfico de sangue, alcoolismo, drogas, degradação familiar são vistos exemplarmente pela lente clássica de Oshima. Sem o sentido do cotidiano de Yasujiro Ozu ou os rasgos melodramáticos ou trágicos de Akira Kurosawa, Oshima esmera-se num classicismo plástico em que, ainda quando retrate o universo jovem e marginal, sobrepõe um certo sentido intelectual de sua plasticidade de filmar. Feito numa época em que o intelectual ainda tinha alguma coisa a dizer (era o auge do francês Jean-Paul Sartre), O túmulo do sol é uma narrativa de seu tempo que tem o condão de atravessar as décadas e, quiçá, os séculos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br