As Letras da Insnia: Acordar Preciso
O que fascina amide em A insnia dos sabis a forma como esta sintaxe e este vocabulrio extremamente despojados do texto exigem do leitor uma concentrao inusitada, quase to grande quanto aquela que doamos leitura do mundo, literrio e humano, barroco de Joo Guimares Rosa
Eu e a escritora Alessandra Rech à mesa de autógrafos da Feira do Livro em Caxias do Sul em 2018.
Nascida em Caxias do Sul em 6 de fevereiro de 1975, jornalista, professora universitária, escritora, Alessandra Paula Rech é um dos autores brasileiros de hoje que com mais grandeza e sensibilidade sabe manejar a língua portuguesa para dar seu recado. Cronista do jornal caxiense “Pioneiro” entre 2000 e 2014, Alessandra estreou com o volume de contos Aguadeiro (2007), publicado pela Editora Horizonte, de Vinhedo/São Paulo, pelo qual recebeu um “alvíssaras” de outra bela escritora, a gaúcha Cíntia Moscovich, numa pós-apresentação. Depois veio um ensaio sobre João Guimarães Rosa, Na entrada-das-águas; amor e liberdade em Guimarães Rosa (2010), publicado pela editora da UCS, dedicado a Flávio Loureiro Chaves, um dos mestres da crítica literária gaúcha e com prefácio em que Luís Augusto Fischer reconhece “passagens sublimes”, onde se plasma que a força poético-reflexiva de nossa autora serrana tem origens altas na literatura brasileira. Então assomam dois livros pela Belas Letras, uma casa editorial caxiense: a narrativa infanto-juvenil O sumiço do canário; quando os finais precisam ser inventados (2012) e a maravilhosa reunião de crônicas Mirabilia (2014). Acresce-se ainda que Alessandra fez o roteiro do filme serrano A sagração do cotidiano, benzeduras (2009), de Janete Kriger.
A maturidade do texto de Alessandra chega a um ponto mais depuradíssimo em A insônia dos sabiás (2018), edição da autora, sua segunda incursão no universo infanto-juvenil, mas agora de intenções ecológicas que determinam muito do despojamento de sua linguagem. O que fascina amiúde em A insônia dos sabiás é a forma como esta sintaxe e este vocabulário extremamente despojados do texto exigem do leitor uma concentração inusitada, quase tão grande quanto aquela que doamos à leitura do mundo, literário e humano, barroco de João Guimarães Rosa: lemos uma frase e tornamos a lê-la para imitar este descascar do verbo que Alessandra parece estar exigindo sempre da literatura. Se O sumiço do canário era narrado por uma menina, Lívia, A insônia dos sabiás é trazido até nós pela voz narrativa de um menino, Martim; mas talvez uma figura central da história seja Davi, o colega autista amigo de Martim, especialista nestas aves pré-históricas, os dinossauros, na vida de Davi os dinossauros são tão presentes “como as pombas que circulam os farelos do pátio da escola, quando termina o intervalo”. O mote básico do que se conta em A insônia dos sabiás é o fato de os sabiás, em algumas cidades, acordarem de madrugada e passarem a cantar, atrapalhando o sono dos moradores; estudo para cá, estudo para lá, descobre-se que nas cidades mais populosas, poluídas e com grande número de veículos é que este fenômeno, chamado “insônia dos sabiás”, ocorre, nos lugares mais interioranos os comportamentos dos bichinhos permanece secular. “Na aula seguinte, todos queriam falar ao mesmo tempo. O mistério a respeito dos sabiás insones tomava proporções maiores.”
A insônia do título pode equiparar o sabiá ao escritor, que faz um outro tipo de canto, montando a poesia da voz com palavras escritas (que trazem o leitor para a imaginação sonora). Tem um romance do escritor português António Lobo Antunes, chamado O arquipélago da insónia (2008), neste livro topamos também com um menino autista, “—o que faço o que não faço—”, Lobo Antunes escreve como um sabiá insone. Bastante mais despojada que o autor luso, há muito disto em Alessandra: construir uma insônia com as letras, dialogar com o sabiá que, como Davi, parece “uma maçã que nasceu na laranjeira”.
A voz serrana de Alessandra ecoa em todos os seus livros. Aqui nA insônia dos sabiás, também. Mas transcende os picos dos montes pela densidade de seu humanismo, que é ao mesmo tempo renascentista e dos tempos duros do século XXI.
Numa entrevista publicada aqui mesmo neste espaço (http://www.dvdmagazine.com.br/materias/materia/title/2658-alessandra-rech-um-cume-literario-na-serra-gaucha) Alessandra deu uma de suas pistas para a interpretação deste seu livro e, de certa maneira, de toda a sua bela literatura. Diz ela: “Penso que o compromisso com a realidade, que parece vir antes nessa obra, precisava andar junto com o literário.” É no fundo o que faz autenticamente essencial sua arte de escrever.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br