Clavícula Intercostal
É preciso fôlego para acompanhar Levada da Breca, o filme de Hawks ganha novos sabores a cada revisão
A máxima que afirma que é mais fácil fazer chorar do que fazer rir se baseia na ideia de que por sermos seres muito emotivos, qualquer pequeno drama nos leva às lágrimas e, num paradoxo estranho, não mostramos os dentes por qualquer coisa. Teorias à parte, há muitos modos de causar gargalhadas e alguns diretores de cinema os conhecem muito bem. Diálogos, tombos, olhares, tudo pode surpreender a plateia. Mas quem conhece os poderes da câmera como a palma da mão consegue extrair um riso extra do espectador. Howard Hawks dirigiu produções nos mais variados gêneros, sempre conseguindo imprimir sua assinatura sem precisar de grandes arroubos cênicos. Esta que vos escreve arrisca dizer que foi no faroeste e na comédia, mais precisamente nas chamadas screwball comedys, que o diretor mostrou-se mais brilhante. Comédias malucas foram algo frequente nas telas na década de 30, mas poucas foram como Levada da Breca.
Se Billy Wilder tem o seu Quanto mais quente melhor quebrando padrões, Hawks tem esta produção que rompe barreiras, a começar por sua dupla de protagonistas. Cary Grant é um atrapalhado paleontólogo David Huxley e Katharine Hepburn é a excêntrica Susan, que caminha na corda bamba entre a loucura e a inocência. É dela, aliás, que partem as melhores tiradas do filme, seguindo à risca a receita para uma boa screwball comedy: diálogos velozes e furiosos (com o perdão da brincadeira com o filme que já está em sua oitava aventura) e situações nonsense.
O primeiro encontro entre ela e David se dá em um campo de golfe onde ambos estão em busca de resultados diversos. Ela quer acertar a bolinha no buraco a qualquer custo e ele encara uma partida com um milionário que pode financiar sua pesquisa. Uma confusão sobre quem é o dono da bola basta para que David embarque na primeira das muitas loucuras que irá dividir com Susan, que incluem um fraque rasgado no meio de uma festa importante, um leopardo vindo do Brasil (país onde, aliás, não há leopardos) e a busca por sua tão sonhada clavícula intercostal de brontossauro. Ufa! É preciso fôlego para acompanhar Levada da breca. Assim como acontece nos filmes do alemão Ernst Lubitsch, em que as segundas intenções das cenas e diálogos podem levar mais de uma sessão para serem compreendidas por completo, o filme de Hawks ganha novos sabores a cada revisão. Grant, desajeitado mas ainda trajando ternos impecáveis, e Hepburn, que não perde a elegância nem quando cai de roupa e tudo dentro de um lago, hipnotizam o público com a mesma rapidez em que disparam suas falas.
Equilibrar tantos acontecimentos e informações em um único filme não é tarefa fácil. Hawks, que ainda faria os ótimos Jejum de Amor e O inventor da mocidade, tinha como ponto norteador o charme de seus atores. Dizem os bastidores que a personagem de Hepburn foi adaptada para se encaixar na personalidade da atriz e nota-se, em especial na cena da cadeia, que houve espaço para o improviso. Escorregar ladeira abaixo e correr feito duas crianças atrás de um cachorrinho não mancharam a carreira de Hepburn e Grant. Muito pelo contrário: só os grandes conseguem convencer tanto com a máscara do drama como da comédia.
Não levar-se à sério. Parece ser esse o ensinamento (filmes não servem para ensinar nada na verdade, mas acontece) de Levada da breca. É um filme para desopilar o fígado, esquecer os prazos e as contas e garantir o sorriso por, no mínimo, uma semana. Em tempos sombrios, onde gente chata brota de onde menos se espera, vale elevar Levada da breca ao posto de obra-prima. Rir sempre será a melhor saída para uma mente sã. Mesmo que o riso venha de uma clavícula intercostal.
Sobre o Colunista:
Bianca Zasso
Bianca Zasso é jornalista e especialista em cinema formada pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Durante cinco anos foi figura ativa do projeto Cineclube Unifra. Com diversas publicações, participou da obra Uma história a cada filme (UFSM, vol. 4). Ama cinema desde que se entende por gente, mas foi a partir do final de 2008 que transformou essa paixão em tema de suas pesquisas. Na academia, seu foco é o cinema oriental, com ênfase na obra do cineasta Akira Kurosawa, e o cinema independente americano, analisando as questões fílmicas e antropológicas que envolveram a parceria entre o diretor John Cassavetes e sua esposa, a atriz Gena Rowlands. Como crítica de cinema seu trabalho se expande sobre boa parte da Sétima Arte.