Guerra Venenoso

Mesmo que evite sempre a clareza linear, O veneno da madrugada é uma realização em que as coisas funcionam admiravelmente

26/04/2019 01:02 Por Eron Duarte Fagundes
Guerra Venenoso

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Numa cena obscura, misturando o surrealismo com o gótico, a câmara divisa um homem encapuzado, caminhando na direção contrária da câmara, este homem se chega de outro homem que a câmara vê à distância (a câmara caminhou junto do encapuzado), diz-lhe o nome, ouve rapidamente sua monossilábica e gutural resposta e dispara contra ele, supostamente matando-o; mais adiante, acompanhamos a mesma cena, mas surge uma alteração, na hora em que o homem de capuz grita o nome do outro, é este outro que lhe surge por detrás e exclama o nome do homem de capuz, alvejando-o.

Há uma cena neblinosa em que um barco singra na direção da câmara, o barco é só entrevisto na fotografia de neblinas da sequência (aí se evidencia a mestria do fotógrafo Walter Carvalho), o homem que o dirige é um ponto fugaz na imagem, mas é este homem que diz as frases perturbadoras da cena, algo como que logo se sabe que se está chegando àquele fim de mundo, pois sentimos o cheiro podre daquela vaca. A cena retorna mais adiante praticamente igual.

Outra cena que, digamos, reencarna no filme é aquela que um belo e plástico plano fixo mostra uma bola amarelada como se fosse uma lua iluminada por um sol, enquanto uma voz feminina tergiversa sobre as flechas do tempo.

Assim se estruturam os ciclos narrativos de O veneno da madrugada (2005), filme dirigido no Brasil pelo moçambicano Ruy Guerra a partir de um texto do escritor colombiano Gabriel García Márquez publicado em 1962. À maneira de alguns clássicos do cinema espanhol, como O anjo exterminador (1962), de Luis Buñuel, e Elisa, vida minha (1977), de Carlos Saura, o novo filme de Ruy parece estar sempre começando, ou às voltas com seus recomeços: isto na verdade é um giro no tempo narrativo, cheio de flechas.

Mesmo que evite sempre a clareza linear, O veneno da madrugada é uma realização em que as coisas funcionam admiravelmente; cuido que desde seus primeiros filmes, Os cafajestes (1962) e Os fuzis (1963), efetivamente inovadores, o cineasta nunca foi tão feliz em achar o tom de um filme; o comercialismo frustrado de Ópera do malandro (1985) e o experimentalismo gago de Estorvo (1999) são frustrações agora compensadas pelas habilidades da experiência cinematográfica de Guerra expostas em O veneno da madrugada. Uma das materializações desta experiência se dá no uso duma elaborada dicção para os atores; a dicção é de fato teatral e literária, e no princípio incomoda nossos hábitos auditivo-cinematográficos, mas logo a sabedoria da direção de Guerra logra converter tudo em espaço fílmico.

A superfície irritadiça de O veneno da madrugada é o contraponto ideal para as opacidades formais de Brasília 18% (2006), de Nélson Pereira dos Santos. Aparentemente este mergulho de Ruy Guerra num vilarejo perdido no interior da América Latina pareceria uma opção cinematográfica escapista diante do pretendido realismo político de Nélson; mas O veneno da madrugada, com seu abundante uso de metáforas (visuais e temáticas), atinge mais profundamente nossa subterrânea realidade nacional do que o correto Brasília 18%.

Em tempo: para mim foi um prazer reencontrar na tela o emblemático ator e diretor negro Zózimo Bulbul. Há vários anos ouvi um discurso antibranco de Bulbul como prévia duma apresentação de filmes de negros e sobre a questão negra no Brasil, na Sala Redenção; fiquei eletrizado com o panfletarismo racial de Bulbul. Ele é um mito para quem acompanha o marginal cinema de pretos no país; talvez as novas gerações não tenham muitos dados para aquilatar seu significado no elenco de O veneno da madrugada, mas para este comentarista foi uma emoção histórica revê-lo.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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