O Fim Iminente

Antes do fim vai na verdade discutir a possibilidade do homem de se matar, para evitar uma longevidade que o deforma, e à sua história, biológica ou intelectual

07/04/2019 00:36 Por Eron Duarte Fagundes
O Fim Iminente

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Certa vez, respondendo o que seria um velho, o velho filósofo francês Jean-Paul Sartre disse numa entrevista: “Um velho é alguém para quem as pessoas olham e dizem, ‘ele vai morrer em breve’.” Não sei se foi bem isto: cito de memória. Mas foi algo com este significado.

Ao ver o filme Antes do fim (2017), de Cristiano Burlan, que põe em cena um casal de velhos tergiversando à espera do fim, me pergunto se o diretor, que faz referências literárias em sua narrativa, não terá algum dia lido as memórias do escritor argentino Ernesto Sabato, que se chamam justamente Antes do fim (1999). As correlações de título e temáticas das duas obras me perseguem; o livro trata da decadência física duma grande personalidade literária, o filme encena duas personagens para no fundo reflexionar sobre duas personalidades fundamentais do cinema brasileiro; o que este espectador-leitor vê são almas de exceção transitando artisticamente. Se Burlan não leu o livro, eu o fiz por ele vendo o filme que ele fez.

O projeto cinematográfico de Burlan (um gaúcho radicado em São Paulo desde a infância), passado o primeiro momento, que foi a instabilidade pessoal de Mataram meu irmão (2013), passou a ter uma inspiração clara na figura do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet. Em sua encanação urbaníssima de Hamlet (2014), lá estava o velho pensador do cinema nacional como criatura shakespereana. Mas foi em Fome (2016), com a criação da impagável personagem do intelectual-mendigo, que a fusão Bernardet-Burlan atingiu seu ponto mais convulsivo, tenebroso mesmo.

Agora, em Antes do fim, Bernardet retorna. E acompanhado. Está acompanhado de outro ícone de nosso cinema. A atriz Helena Ignêz. O roteiro do filme, artificioso adrede, propõe um périplo Bernardet-Ignêz. Vivem um casal de velhos, mas os diálogos e as situações se constroem dos seres reais dos intérpretes; Helena, agora velha, uma velhice bizarra, é confrontada com uma jovem Helena em Copacabana mon amour (1970), de Rogério Sganzerla, onde a moça exclamava furiosamente que tinha horror à velhice. Bernardet atende no filme por seu primeiro nome, Jean; Helena vai atender por Helena mesmo. Helena está lendo um livro em que o autor, não podendo viver após a morte de sua amada (que está  com uma doença que a levará à morte), propõe o suicídio duplo, Bernardet dá seus pitacos sobre a leitura de Helena, sente-se que em ambas as personagens surgem os entes reais por trás delas, um pouco tortos é fato, mas transcendentes, ásperos, volumosos. O livro que Helena está lendo não é referido em cena; o leitor que o tenha lido logo o identifica: trata-se de Carta a D (2006), do francês André Gorz, uma espécie de testamento-suicídio, ou carta final convertida em literatura.

Mas, circundado por estas alusões diversas em torno de livros e  filmes, qual é mesmo a base que forma o centro de Antes do fim? É outra coisa secreta. É um texto que Bernardet escreveu em seu blog em 10.04.2015. Debruçado sobre duas pessoas tão antigas que parecem constantemente à beira da morte, de seu fim, Antes do fim vai na verdade discutir a possibilidade do homem de se matar, para evitar uma longevidade que o deforma, e à sua história, biológica ou intelectual; no texto aludido do blog Bernardet critica a “imensa máquina da medicina”, que inclui hospitais, laboratórios, farmácias, médicos, máquinas, onde se produz uma longevidade artificial para que esta máquina médica enriqueça. Bernardet refere ali a solução: o suicídio consciente e lúcido. Numa cena do filme, sentado num banco, a personagem de Bernardet reconstrói estas ideias de 2015: o desinteresse da área médica pela qualidade de vida, o interesse dela pela bio de que somos portadores. Diferentemente de Carta a D, a outra pessoa (no caso, a mulher, Helena) não vai acompanhar o suicida em seu gesto. O fim iminente de Bernardet e Ignêz remete a Sartre, que foi amigo e mestre do autor de Carta a D: eles são velhos, muito velhos, é natural que a qualquer hora morram.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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