Ming-Liang Não Brinca em Serviço
Não é para brincar com o espectador que o cineasta taiwanês Tsai Ming-Liang propõe planos fixos quase intermináveis para exacerbar o olhar
Não é para brincar com o espectador que o cineasta taiwanês Tsai Ming-Liang propõe planos fixos quase intermináveis para exacerbar o olhar. Os primeiros nove minutos de Jornada ao oeste (Xi You; 2013), talvez o mais radical trabalho de Ming-Liang dentro duma filmografia habitualmente radical, mostram um longo plano fixo do rosto, sombrio (mas um sombrio ascético), de um homem, numa imagem de leve inclinação. A câmara não se mexe durante os nove minutos. Os movimentos dentro do quadro são escassos e de difícil percepção. É um pouco como se o indivíduo que vê a imagem fosse, mais do que nunca, convidado a permanecer alheio ao que está em cena. Distanciamento radical entre quem faz a obra e a desfruta. Não sabemos nada do ser que está na tela: seu espaço físico é limitado por um enquadramento enforcado e seu interior, se pode ser a caracterizado como sombrio, é enigmático, não há sinal, não há pista. O vazio em nove minutos —uma abstração tão incômoda quanto aquela permitida somente a certas pinturas e a certas músicas. O neutro finalmente atingido: o átomo cinematográfico afinal explodido. Os olhos vão piscar mais para diante no plano. O pescoço arqueja, embora tardamos um pouco em perceber estes pequenos movimentos da pele. A respiração é também outro dado de que só lá pelas tantas nos damos bem conta. Nascido um pouco do velho Michelangelo Antonioni (estimular os ritmos do olhar), Ming-Liang chega ao outro lado de sua jornada.
Os planos que sucedem a esta provocação inicial não diferem deste começo em sua estrutura, postura, intenções. A penúltima sequência é a do monge oriental de vermelho numa esquina de Marselha, no interior da França, no início quase parado, depois vemos que ele se mexe porém muito lentamente, em seguida é acompanhado em seus gestos e movimentos por um transeunte ocidental, o contraste entre o azáfama das pessoas que passam pela esquina e a calma plástica com que as figuras centrais da imagem se comportam em cena. São outros dez minutos de câmara imóvel nesta sequência. A sequência que fecha o filme, cerca de cinco minutos, apresenta uma imagem de cabeça para baixo, também é um local onde muitas pessoas transitam, agora não há centro, sentimos uma fluidez de fótons que evoca uma ilusória mas forte poesia plástica, algo como um rio em que o mover de ondas é feito de versos. A história que não existe, como num romance de Marguerite Duras. “Il n’y a jamais de centre.” Ou algo parecido com aquele romance imaginado por uma personagem de Joris-Karl Huysmans, o poema em prosa onde algumas frases-chave conteriam o sumo de tudo, sumo que também é a suma. O sumo-suma do cinema de Ming-Liang é a obsessão de algumas imagens centrais. De todo o movimento exagerado do mundo contemporâneo ele acaba extraindo a essência em suas longas meditações fixas. É uma jornada: mas não a um ponto cardeal conhecido.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br