Vender Gato Por Lebre
O francês Michel Houellebecq é um dos escritores característicos de nossa época
O francês Michel Houellebecq é um dos escritores característicos de nossa época. Em algumas declarações o romancista imagina que sua literatura é feita para o grande público. Meia-verdade. Eu não diria que seus textos apresentam grau de dificuldade para este grande público. Nada disto: o vocabulário parece em geral bem contemporâneo e a sintaxe se estrutura de maneira elaborada mas simples e quase direta. Mas eu juraria que suas inquietações não teriam o condão de produzir um público tão vasto quanto aquele que compra seus livros. Mais ou menos como no tcheco Franz Kafka: o público normal não verá nada de mais em ler suas frases simples, mas também não irá muito além disto. Que é que, então, explica o estrondoso sucesso comercial da literatura de Houellebecq? É que ele é também um marqueteiro de primeira: sabe criar situações que chamam a atenção para ele e para seus livros e, aqui e ali, conta com acontecimentos que favorecem a propaganda em torno de sua marca. Ou seja: uma coisa é a excelência da literatura de Houellebecq, outra são as circunstâncias que cercam esta literatura visando ao movimento de livrarias.
O que ocorre com Submissão (Soumission; 2015), mais um de seus grandes livros, é exemplificador desta situação. Antes e depois do atentado islâmico contra a sede da revista Charlie Hebdo em Paris, em sete de janeiro último, vendeu-se a trama do romance como uma visão aterradora do domínio muçulmano na França e na Europa no futuro de 2022. Aparentemente é isto: o representante da Fraternidade Muçulmana vence as eleições deste remoto futuro, mas as coisas, no começo de seu governo, não parecem tão assustadoras e, como diz a frase final, “eu nada teria do que me lamentar”. A possível atmosfera de pesadelo subliminar é bem menos aguda que a de outros livros de Houellebecq. O leitor midiático vai buscar o livro graças ao sensacionalismo antimuçulmano. Deverá decepcionar-se: o narrador de Houellebecq está mais bem comportado agora, embora o tom ferino ainda exiba sutilezas estranhas.
Escreveram na França que a figura central de Submissão não chega a ser o professor universitário François nem muito menos o islamismo francês. Escreveram que a personagem principal do romance é Joris-Karl Huysmans, um pós-naturalista francês pouco conhecido hoje em dia e que a arte de Houellebecq, mais lida do que seria seu padrão graças às jogadas marqueteiras, vai divulgar para uma plateia que pouco ou nada poderá ter com criaturas como Huysmans. Quem escreveu estas coisas sobre o novo Houellebecq, está certo.
Talvez Houellebecq tenha escrito Submissão paraexpor seu fascínio diante do verbo de Huysmans, cuja literatura, pela boca de François, ele parece admirar bem mais do que os divulgados e consagrados do naturalismo francês. No fim do livro Houellebecq revela que nunca fez estudos universitários, logo desconhece o que sejam as universidades, mas aduz que o que possa ter de verossímil no romance ele deve a uma professora universitária, que lhe teria passado as informações. Em O mapa e o território (2010), nos agradecimentos finais, ele faz algo parecido: agradece à gente da polícia esclarecimentos para poder narrar coisas num meio que o autor desconhece. Verdade ou mentira: Extensão do humor ou ponto de seriedade nesta documentação que não seria a praxe da ficção de Houellebecq?
Boa parte da trama na verdade desliza sorrateiramente pela tese que François escreveu sobre Huysmans. Aí Houllebecq aproveita para utilizar, ficcionalmente, suas leituras das obras de Huysmans. Não deixa de ser um romance literário, de ideias. Há um certo ar brincalhão com as coisas da academia. Pode haver algum deboche. Mas revela um lado que o romancista provavelmente gostaria de ter exercido ao longo da vida: com sua cultura, talvez lhe coubesse uma vida universitária. É uma vida em que o homem tanto pode circular em torno duma citação a Aiatolá Khomieni (o islã, em não sendo político, deixa de ser alguma coisa) quanto vai ter em Arnold Toynbee (ninguém destrói as civilizações, elas matam a si mesmas).
De onde vem mesmo a submissão que Houellebecq evoca? Lá pelo fim, o narrador, partindo de História d’O, um clássico do erotismo francês, aduz que o cume da alegria do homem é a submissão total. O leitor pode pensar nas encenações eróticas. E também no islamismo, ou em qualquer religião: submetemo-nos ao conceito de Deus. Mas é outro gato por lebre: “Huysmans” deveria ser o título deste livro. Mas como vendê-lo como um pesadelo muçulmano apresentando tal título?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br