Identidades Historicas, Literarias e Atavicas
Que leva uma contempor?nea de nosso s?culo XXI a mergulhar num antigo renascentista para dedicar o trabalho de uma mente numa tese universitaria?


A escolha de um tema diz muito de quem escreve sobre o tema. Num microcosmo, talvez uma escolha revele todas as outras escolhas. Cláudia de Marchi escolheu o mito fáustico erigido pelo dramaturgo inglês Christopher Marlowe para exercitar o brilho de seu raciocínio e os esforços amplos de pesquisa duma tese acadêmica em Conhecimento e magia: o Fausto de Marlowe (2023). Desde o começo, a autora deixa claro que abdicará de outros Faustos, que vieram nos séculos seguintes, como os dos alemães Goethe e Thomas Mann, para se concentrar no Fausto do escritor inglês, as circunstâncias históricas, as possíveis genéticas de sua composição e a natureza mesma de seus poemas. Não é pouca coisa: é abarcar um universo tão grande quanto longínquo para um indivíduo do século XXI. Gerson Luís Trombetta, professor-orientador da tese de mestrado de Cláudia, anota na apresentação: “Podemos considerar o pacto realizado por Fausto (de Christopher Marlowe) como uma vitória sobre as neuroses e medos do final da Idade Média. Ainda que conte com a parceria de Mefistófoles, é um triunfo humano, uma conquista que impulsiona o espírito para uma nova época.”
Que leva uma contemporânea de nosso século XXI a mergulhar num antigo renascentista (menos vultoso que, por exemplo, seu contemporâneo Shakespeare) para dedicar o trabalho de uma mente numa tese universitária? Sempre há a angústia do saber que percorre espíritos como o de Cláudia. Mas: por que Marlowe, por que o Fausto de Marlowe? Cláudia não esconde o jogo, como é de seu jeito: “Eu me identifico com Fausto. Nutro as mesmas indignações com as limitações humanas que o personagem nutria, entretanto, ao contrário dele não posso me indignar com um Deus em cuja existência eu não acredito. Resta aqui um ponto importante: as formas do ateísmo transparecer hoje são muito distintas da que se via no século XVI, conforme abordarei ao fim do terceiro capítulo. Em tal período a descrença na divindade cristã despontava de formas mais discretas e menos agressivas do que hodiernamente.” Em seu livro, nascido do mestrado, Cláudia analisa estas pontes: a de Fausto com ela mesma, uma criatura de tantos séculos depois, uma genética e suas transformações seculares, as relações de Fausto com o narrador de Marlowe, com o próprio escritor Marlowe, com o homem renascentista Marlowe. Para isto, uma busca essencial é escavar naquilo que o impressor inglês John Spies fez alguns anos antes de Marlowe, recolher em alguns contos a lenda oral germânica de Fausto, um cidadão que de fato teria existido na Alemanha. Cláudia exibe sua destreza analítica ao expor as diferenças entre o conformismo dos relatos de Spies e os tons mais avançados do revolucionário Marlowe. Esta mesma destreza de esgrimista deparamos quando a autora se debruça sobre comparar a descrença no século XVI e a descrença no século XXI, movendo uma dialética e uma dinâmica históricas que dão sentidos diversos às navegações que os homens fazem, à maneira de Fausto ou fora da maneira de fausto, entre o conhecimento e a magia.
Cláudia faz, com grande senso de dispor os elementos de pesquisa para entender Marlowe e Fausto em sua quadra histórica, uma obra cujo fascínio se dá também por abrir portas para o leitor pensar em outras análises complementares. Diz Cláudia: “Essa pesquisa, portanto, requer continuidade. Através de acurada análise linguística do texto original de Marlowe pretende-se encontrar as marcas semânticas da descrença de seu autor, inclusive através das implicaturas de Grice. Urge, pois, uma análise semiótica da obra original, uma vez que a estudada nesta pesquisa foi o texto traduzido por Luiz Antônio Aguiar.” As inquietações podem multiplicar-se, conforme o temperamento do leitor de Cláudia de Marchi. Por que o mito de Fausto tem interessado tanto ao cinema, do alemão F.W. Murnau ao russo Alexander Sokurov, seria essa transição entre conhecimento e magia, comum na época de Fausto/Marlowe e tão do berço da sétima arte? Por que Machado de Assis, ao escrever seu mais belo conto, A igreja do diabo, sem pôr Fausto diretamente na narrativa, o traz para sua literatura às ocultas, como um pacto coletivo mefistofélico? Talvez se possa começar, seja qual for o caminho que se tome, por esta indicação de Cláudia: uma análise semiótica do original de Marlowe.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

relacionados
últimas matérias




