O Homem Inexistente

O italiano Primo Levi é uma das vozes literárias que iluminaram o século XX

23/03/2017 23:20 Por Eron Duarte Fagundes
O Homem Inexistente

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O italiano Primo Levi é uma das vozes literárias que iluminaram o século XX, um século barroco por excelência em que trevas e luzes se digladiaram misturando fatos medievais e pensamentos renascentistas. Um de seus livros fundamentais é É isto um homem? (Le questo è un uomo?; 1958), relato de sua experiência no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, célebre local onde os nazistas aglomeraram judeus durante a II Guerra Mundial.

Estilisticamente o relato minucioso e espantado de Levi segue uma linha kafkiana, neonaturalista em texto e posição da linguagem diante dos acontecimentos entre absurdos e delirantes; embora, adverte o autor no prefácio, “nenhum dos episódios foi fruto da imaginação”. Não é ficção, mas é ao mesmo tempo nossa grande ficção contemporânea: um documentário dos horrores do homem. No introito, Levi põe uma espécie de versos descarnados, quase à maneira de nosso brasileiro Carlos Drummond de Andrade: “É isto um homem?// Vocês que vivem seguros/ em suas cálidas casas/ vocês que, voltando à noite,/ encontram comida quente e rostos amigos.” Em Drummond: “Este é tempo de partido,/ tempo de homens partidos.” Brutalmente a prosa de Levi começa seu périplo: “Fui detido pela Milícia fascista no dia 13 de dezembro de 1943.”

No prefácio Levi aduz a problemas estruturais de seu relato. Na verdade não os há. O que há é a estrutura do tempo da vivência de Levi: seu olhar retrospectivo acompanha um passado sempre presente —o passado da humilhação, da tortura, da perda de identidades. É esta estrutura que salta da forma de escrever de Levi; é como se Kafka tivesse vivido, literalmente, o que escreveu. Nas bordas tortuosas do século, Levi anota: “Jazíamos num mundo de mortos e de fantasmas. O último vestígio da civilização desapareceu ao redor e dentro de nós.”

Levi expõe com rigor a perda da humanidade no homem humilhado, despersonalizado. O torturador é ainda um homem e segue sendo um homem. O torturado em boa parte o deixa de ser. “É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta injustiças, mas não é um homem quem, perdida já toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz.” Mas Levi, com sua literatura, resgata a humanidade deste homem desumanizado; evoca “um leve cheiro de tinta e de breu” que lhe lembra “a praia e os barcos dos verões” de sua infância. “Heimweh, chama-se em alemão essa dor. É uma palavra bonita, significa ‘dor do lar’.” É assim: o olhar de Levi segue os passos, em É isto um homem?, de um grupo de indivíduos em que o lar ficou tão longe e inalcançável que só pode ser capturado sob a forma de dor. É esta dor que, de forma austera, Levi põe diante do leitor em seu livro.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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