A Origem Cinematográfica da Literatura

Veja a matéria de Eron Fagundes sobre o paulista Marçal Aquino, hoje festejado como o romancista de Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios e suas origens literárias.

22/09/2013 23:11 Por Eron Fagundes
A Origem Cinematográfica da Literatura

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O paulista Marçal Aquino, hoje festejado como o romancista de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), nasceu do cinema. Antes de se entregar à literatura propriamente, a exercitou escrevendo os roteiros para os filmes do também paulista Beto Brant; nos anos 70, quando escreveu Chuvas de verão (1977), o diretor brasileiro Carlos Diegues definiu o roteiro cinematográfico como uma espécie de novela cinematográfica, com uma existência à parte do filme em que possivelmente se transformará; pela mesma época o sueco Ingmar Bergman publicava em livro seus textos-roteiro, e eram tão notáveis que valiam literariamente, não somente como um esqueleto de uma outra arte; diz-se que o francês Eric Rohmer (e isto é perceptível na visão de seus filmes) projetava suas histórias com um propósito inicialmente literário. Um dos livros de Marçal, O invasor (2002), nasceu como um gêmeo do filme homônimo de Brant. Talvez por isso, para evitar esta fácil associação, é que entre o livro e o filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios se deixou transcorrer um bom espaço de tempo; no entanto a irmandade entre as duas expressões se evidencia, embora claramente Marçal se vá afastando cada vez mais de sua origem cinematográfica para dar um texto de autenticidade literária.

Basicamente a trama a as tensões do romance de Marçal são as mesmas que Brant aproveitaria em seu filme. Lavínia, uma misteriosa mulher do interior do Brasil, está dividida entre dois homens: um pastor que a acolheu nas ruas de prostíbulo e com ela se casou, e um fotógrafo com quem ela arde em carne (embora, confesse, apesar da grandiloquência religiosa, seu pastor também se interesse por seu corpo — Marçal escreve: “Sabia, pelas companheiras de luta, de histórias de clientes que rezavam enquanto fodiam”).

Marçal utiliza com grande categoria as fusões dos discursos indiretos, e com estes discursos indiretos se enxertam os próprios diálogos das personagens, perdidos nas vagas de palavras ininterruptas; no filme as imagens e os diálogos substituem estas intrincadas relações formais da literatura, criando uma outra transparência, muito cinematográfica, o que revela as dissenções objetivas que Brant e Marçal enxergam naquilo que há entre o cinema e a literatura (tal como os imaginam) em semelhanças e dessemelhanças.

“O pastor viu Lavínia pela primeira vez numa rua de Vitória”, começa um bloco narrativo que se intitula “Carne-viva” e que assim como no filme de Brant se insere numa montagem (no filme, sem título, sem a estrutura de bloco, que no livro é um pouco ao modo daqueles do autor mineiro Autran Dourado) que recapitula as origens de Lavínia e como ela veio ter às mãos de Ernani. “Lavínia perguntou se Ernani não queria ir a algum lugar com ela./ Onde?/ Ah, sei lá, a gente pode ir pruma boate./ Ela falou isso rindo, um pouco embalada pelo ácido, um pouco por acanhamento. A presença daquele homem exerceu um poder estranho sobre Lavínia. Intimidou. Mas fascinou também.”

Marçal Aquino radiografa, com muita propriedade e uma linguagem de relativa densidade, as tensões entre o corpo e o espírito nas relações entre Lavínia e o pastor. “Durante todo o tempo em que Lavínia esteve ali, Ernani não a tocou. Ou melhor: tocou-a, duas vezes, mas não do modo como ela esperava. Um foi quando pediu que se ajoelhasse a seu lado, segurou a mão dela e começou a orar. Lavínia sentiu-se um pouco desconfortável, meio ridículo, porém, a exemplo do pastor, manteve a cabeça baixa e os olhos meio cerrados. Não rezou, mas se rezasse seria para que aquilo terminasse logo, para que o homem deixasse de lengalenga e tirasse sua roupa, para que ele gozasse rápido. Queria pegar a grana e sair voando dali. Estava aflita para tomar algo que a deixasse alta,  que a fizesse esquecer que a outra Lavínia batia na porta. Pronta para entrar em cena.” Entrementes, no filme de Brant a questão física do cinema sobressai, descurando as essências espirituais; esta intensidade física é salientada pelo uso tresloucadamente vulgar (mas belo) da persona física e moral da atriz Camila Pitanga. O romance é narrado em primeira pessoa pelo fotógrafo Cauby, como uma expiação de seus fantasmas interioranos; o filme é imagem, ainda que a palavra aqui e ali lhe cruze os poros, e esta imagem, no filme de Brant, adota um ponto de vista onisciente. As sensações carnais no texto de Aquino transbordam de uma certa persona mística, que é algo de que Brant (e Aquino no cinema) esteve mais próximo em Crime delicado (2005). “Lavínia estava tão próxima que seu braço roçou no meu. Uma descarga elétrica. A fase das fagulhas, como diz mestre Schainberg em seu livro. O momento em que os amantes têm a certeza de que algo vai acontecer em breve para saciar a fome que sentem, e saboreiam a esperas, muitas vezes prolongando-a. Choques não são incomuns nessa etapa, sustenta Schianberg.” É algo diferente do que ver Camila nua e trepando como um bicho áspero e perverso numa tela de cinema.

O começo do filme: a imagem duma mulher de olhar ameaçador, nua, na praia, corpo sujo de areia, fazendo poses de quatro para a câmara (e talvez para o fotógrafo Cauby —esta mulher não entrará mais na história). “Não adianta explicar. Você não vai entender”, começa no livro o relato do fotógrafo Cauby. A última imagem do filme é o sorriso enigmático e belo (ou enigmaticamente belo) de Lavínia/Camila no interior dum manicômio. A frase que encerra o livro: “Eu chamo de amor.” Entre as dificuldades de interpretação da isolada mulher nua (“Não adianta explicar”) e a generosidade amorosa (mas misteriosa) do sorriso final da personagem (podemos chamar de amor?) parece que estão as aproximações e os afastamentos entre o filme de Beto Brant e o livro de Marçal Aquino que lhe deu origem.

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