Linguagem e Realidade: Critica da Razao Brasileira

O leitor que se acerca de um texto de Juremir Machado da Silva deve preparar-se para as surpresas, os paradoxos, a substituicao final do classicismo pelo barroquismo

21/04/2025 01:34 Por Eron Duarte Fagundes
Linguagem e Realidade: Critica da Razao Brasileira

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Antes do escrito: o texto que segue, eu o escrevi em 1996. Circulou no jornal independente “Blau”, distribuído na Feira do Livro daquele ano. As reflexões que esposo no texto são resultado dos meus primeiros contatos, anos iniciais, com a grande literatura de Juremir Machado da Silva, pela leitura de Anjos da perdição, motivos até de várias conversas com outro amigo daqueles anos, o historiador Décio Freitas, já falecido, em alguns jantares.

 

 

Linguagem e Realidade: Critica da Razao Brasileira

 

 

O leitor que se acerca de um texto de Juremir Machado da Silva deve preparar-se para as surpresas, os paradoxos, a substituição final do classicismo pelo barroquismo. Numa de suas crônicas jornalísticas, o próprio Juremir (o melhor crítico de Juremir é o próprio Juremir, mesmo que isto implique um inevitável narcisismo) topa a expressão que define seu verbo: metáforas do sol. E o que encanta em Juremir é esta maneira ensolarada (luminosa) de enfrentar as questões de nosso tempo.

Diante de seu novo livro, o ensaio antropológico Anjos da perdição, futuro e presente na cultura brasileira (1996), pergunto-me que ser desorientador é Juremir. Jornalista, escritor, ficcionista, pensador? Seus artigos para jornais talvez um dia sejam coligidos para mostrar às pessoas até onde pode ir a criatividade de um articulista semanal. Seu romance Cai a noite sobre Palomas (1995) é um dos mais belos de quantos se publicaram nos pampas. Mas o novo livro de Juremir, uma tese de doutorado defendida em Paris, uma elaboração extraordinária em seu exílio cultural, montagem paralela à de sua experimentação ficcional, me coloca diante dum novo rumo: Juremir é antes de tudo um pensador. Acredito que ele nunca escreverá obras como as de Ernest Hemingway ou Sinclair Lewis, que muitas vezes tateiam o documentário. Mas seria impossível a Juremir fazer de Cai a noite sobre Palomas e Anjos da perdição duas integrais obras-primas se não fossem suas qualidades de narrador literário. Como ocorreu no passado com o pernambucano Gilberto Freyre, que retirou da sociologia a aridez das salas de aula graças ao convívio com a estética de narrar, atualmente é Juremir quem humaniza com sua prosa a visão de filósofo a partir de seu conhecimento da literatura.

O mais perturbador, o verdadeiro escândalo verbal é que Juremir é um jornalista barroco. Está dotado de um verbo insatisfeito. E de um pensamento irrequieto. Tornemos a colocar no centro de tudo o pensador. Este pensador transforma-se em jornalista e observa o cotidiano: a tensão teoria-prática, linguagem-realidade emana de seu texto. O jornalista encontra-se com o escritor de ficção, mas é o pensador quem dita as regras. O pensador, nunca devemos esquecer, é a alma do ser múltiplo que é Juremir. É bem isto que incomoda o pensamento clássico, desarticula o mundo intelectual, escandaliza o lugar-comum: a linguagem-realidade que se converte numa realidade-linguagem, criando a tensão que é o aparecimento dum espírito renascentista (Juremir) num homem pós-moderno (novamente Juremir).

Influenciado por seus mestres franceses como Michel Maffesoli (de quem extraiu a paixão pelo exame da vida tribal e do hedonismo dos jovens do fim do milênio) e Edgar Morin (o lado humanista de Juremir deve muito ao autor de Terra-pátria, 1993), na verdade Juremir submete as influências a um processo original de criação. Juremir é um autor muito pessoal graças àquilo que Mafesoli chama “felicidade do texto”. Os “anjos da perdição” com que Juremir batiza os brasileiros contemporâneos não chegam a ter o sentido metafísico dos “homens perdidos” de Morin, mas revelam-se uma imagem extraordinariamente aguda para estabelecer-se uma crítica da razão brasileira. E este levantamento crítico do país está inteiro em Anjos da perdição.

O círculo mental provocado em mim pelas lucubrações de Juremir me conduzem a uma declaração do cineasta Carlos Diegues à época do lançamento do filme Chuvas de verão (1977). Uma das preocupações do antropólogo é narrar o fim das grandes narrativas que previam o futuro maravilhoso e eleger o cotidiano no presente (o presenteísmo) como a característica de nosso tempo. “Viver poeticamente é viver por viver”, assevera Edgar Morin. “Sejamos irmãos não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos”, ensina-nos o mesmo Morin. “Atualmente”, dizia Diegues na entrevista, “considero-me fora do debate cultural que para mim não passa de uma luta de intelectuais pelo monopólio do saber e, na verdade, o saber pertence ao povo. Ele apenas não pode expressá-lo por razões sociais. Não estou mais nesta das grandes formulações culturais, que no fundo celebram apenas a lei do mais forte. Eu acho que a grande tragédia do nosso tempo é que todos os projetos testados fracassaram. Há uma grande desilusão em todos os projetos políticos e sociais já provados.”

Quando Chuvas de verão surgiu no cenário cinematográfico nacional (fim dos anos 70, a ditadura militar apontando para um ainda tênue diálogo) houve quem visse no belo filme de Diegues um ponto de conciliação crítica: o abandono dos grandes temas (Xica da Silva, realizado por Diegues em 1976, por exemplo) para contar a trivialidade dum recém-aposentado. Vejo no filme de Diegues e em sua declaração alguns pontos em comum com esta opção (identificada por Juremir) pelo cotidiano que “se faz e refaz sem fim, sem norte  e sem descanso”, com este voltar as costas para as grandes certezas futuristas, então expressas por Diegues como “grandes formulações culturais” (as diversas versões do marxismo, por exemplo). Mas Diegues, na parte final do texto citado, é um herdeiro pós-utópico, um socialista desencantado: fala em tragédia, fracasso, desilusão. E por aí se afasta do presenteísmo de Juremir, que captou o sentido da frase de Morin: “A missão e a demissão são igualmente impossíveis”. Diegues provavelmente não assinaria esta sentença de Juremir: “A História vaga sem leis e não há porto de chegada.” Juremir soube ver com precisão a “aventura desconhecida” de que fala Morin. Diegues, com Chuvas de verão, substituiu o cotidiano à estética dos grandes temas. As telenovelas minuciosamente observadas por Juremir não têm a clareza e o despojamento da obra de Diegues, mas na pena do analista social têm o mesmo valor antropológico. Diegues soube do fracasso de sua geração e volveu suas antenas para o ponto de onde nasceria a geração de Juremir: o bairro como formador de associações de pessoas por identidades íntimas.

O jovem Juremir, escritor completo, é uma personalidade adiante de seu tempo. Daí a incompreensão dos que se acercam de sua obra. A anos-luz do mundinho cultural gaúcho, Juremir foi obter reconhecimento na cidade das luzes, Paris. Mas é um autor essencialmente nacional, essencialmente gaúcho. Daqui a duzentos anos, ensaios como A miséria do cotidiano (1991) e Anjos da perdição serão reabertos em seu verdadeiro sentido: a linguagem crítica  da razão brasileira, vista dos confins dos pampas. Eis aí outro paradoxo: de um pensador que prega a transitoriedade e a relatividade  das coisas (seu artigo ‘contra” Shakespeare e Luis Fernando Verissimo padeceu da má vontade provinciana) emana uma obra do futuro.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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