A Fome das Imagens

Fome de Viver esta cheio de ligeirezas superficiais em sua montagem vertiginosa e nas nebulosas fotograficas

15/03/2024 01:17 Por Eron Duarte Fagundes
A Fome das Imagens

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Quando o inglês Tony Scott dirigiu seu primeiro filme, Fome de viver (The hunger; 1983), seu irmão Ridley já andava aprontando das suas no mundo do cinema (Ridley já tinha feito Os duelistas, 1977, um drama napoleônico extraído da literatura de Joseph Conrad, Alien, 1979, um terror espacial, Blade Runner, 1982, uma aventura futurista). Naturalmente, os traçados formais preciosistas à maneira britânica nos dois irmãos começaram a ser comparados, em suas equivalências, distâncias e diferentes densidades. Tony dividiu os espectadores de seu tempo. Houve quem se entregasse ao jogo inconsciente das imagens que saía impetuosamente da cartola do cineasta como um prestidigitador. Houve quem o execrasse pela dissolução dramatúrgica da narrativa a partir dos elementos de linguagem de Ridley, as facilidades do cinema publicitário; supunha-se que havia muita atmosfera em fogo e pouca capacidade de resistir a uma permanência para além dos efeitos dentro da sala de projeção. Passadas as décadas, Fome de viver adquiriu a estatura de filme de culto, não somente entre os apreciadores dum terror industrial diferenciado e pós-moderno mas ainda inevitavelmente entre todos os cinéfilos que se interessam por aqueles filmes que, bem ou mal, resistem à passagem dos anos.

Certo. Fome de viver está cheio de ligeirezas superficiais em sua montagem vertiginosa e nas nebulosas fotográficas. Scott, a partir dum romance de Whitley Strieber, vai edificando uma história em fragmentos visuais que não se encadeiam facilmente. Importa mais a atmosfera criada, onírica e perversa, que as relações muitas vezes entre as sequências e entre as personagens. Como num filme de David Lynch: mas sem toda esta complexidade estética de Lynch. Fome de viver busca a voracidade sensorial da imagem em si: antecipa uma espécie de fome de imagem da civilização que viria. A cena de abertura, com os protagonistas da história e a banda de rock inglesa Bauhaus, é característica desta linha narrativa do filme: impressionar visualmente, naquilo que o visual tem de mais direto e fácil, os olhos do observador. David Bowie, na pele de John, o vampiro (embora a palavra nunca seja pronunciada em cena: só temos os conceitos), tem sua mais notável aparição no cinema, devidamente maquiado na repugnante velhice física; Bowie é músico, e o filme de Scott tem muito de música na própria manipulação da imagem e do cruzamento entre as imagens.

Mas quem verdadeiramente desbanca interpretativamente a realização são as atrizes, a francesa Catherine Deneuve como Miriam, a vampira esposa de John, e a americana Susan Sarandon como a médica que se aproxima do casal de vampiros e é perigosamente cooptada; uma sequência de amor físico entre Catherine (lembrando aqueles ocultos engenhos de sua juventude em Repulsa ao sexo, 1965, do polonês Roman Polanski) e Susan (ainda quente de sua sensualidade devoradora e densa em Atlantic City, 1980, do francês Louis Malle) é uma das mais apaixonantes cenas de sexo da história do cinema e eleva o filme para além de seus limites. Pode parecer (ou ser) um envelhecido voyeurismo machista ver com erotização este louco momento lésbico do filme (que certamente Tony realizou como um macho que espia as fêmeas se devorarem os corpos); mas é o que acontece, e o filme se plasma como filme assim mesmo. Em toda a sua beleza e também em seus problemas. Não por acaso ele foi polêmico em seu tempo e, ainda que os anos lhe deem outro status, não se exime de várias discussões.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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