Cineasta da Palavra: Ainda Existe?
O roteiro de O filme da romancista p?e em cena (e em seus conflitos) uma romancista que quer fazer um filme de medeia-metragem


Como o americano Woody Allen antes de cair em desgraça (industrial e esteticamente) por coisas nada claras à margem do cinema, o sul-coreano Hong Sang-soo faz um filme atrás do outro. Um filme encadeado no outro: um filme que refaz, altera, diz e desdiz o anterior. O filme do romancista (Soseolgaui Yeonghwa; em inglês, The novelist’s film; 2022) é seu mais recente trabalho. Ainda que o espectador saiba como os diálogos compõem minúsculas atmosferas cotidianas e esteja preparado para estes plásticos e no entanto singelos longos planos fixos, O filme da romancista surpreende o observador pela amplitude de significados cinematográficos que o diretor oriental soube extrair de tão contidos elementos.
Estruturado em blocos rigorosos de câmara imóvel em que a atenção sobre o quadro se dá pelas formas expostas pelos atores e pelas conversações entre o banal e o estético, O filme da romancista num movimento inicial do olhar não difere da filmografia anterior de Sang-soo, onde a estaticidade visual se concentra em alinhavar parte do clima pela utilização da palavra, o que remete ao conceito de cineasta da palavra, um status cada vez mais anacrônico num meio como o cinema, voltado para uma imagem que tecnicamente se rebusca. Isto não significa que o sul-coreano não se volte para a depuração da imagem: mas é tudo muito discreto, assim como os poucos movimentos de câmara de ajustes de ângulos que aqui e ali se esgueiram entre os planos fixos.
O roteiro de O filme da romancista põe em cena (e em seus conflitos) uma romancista que quer fazer um filme de média-metragem, um diretor de cinema a quem ela se alia para transformar suas ideias em imagens e uma jovem atriz que lhe serve de materialização para seu projeto; numa reunião da equipe de produção, surge um poeta que bebe bastante e, segundo a romancista, que o conheceu bem no passado, é um dos raros que escrevem o que vivem (ela o diz à parte a um interlocutor). Esta relação entre vida e arte é também expressa num momento em que a romancista descreve ao diretor sua concepção de um cinema próximo do que se vive; o diretor aduz que ela quer um documentário; ela diz que não é um documentário, haverá uma história, mas a história não importa, o que parece interessar é que o filme, narrado, se abre para o que se cria no momento da filmagem, a vida irrompe no set e é filmada, algo assim, semidocumentário, documentário de ficção. De que está falando mesmo a romancista-personagem de Sang-soo? Sang-soo de fato filma a intimidade da câmara: é algo novo no cinema, mesmo que o espectador procure suas referências fílmicas em gente como Éric Rohmer, Robert Bresson ou Roberto Rossellini, todos ocidentais. Os ocidentais estamos longe de captar plenamente o cinema deste sul-coreano. Demais, as informações sobre o homem por trás do realizador são escassas por aqui. Que pensa ele? Que filmes viu ou admira? Sobre que livros se debruçou? Talvez O filme da romancista, que traduz seus enigmas em sua própria simplicidade, possa desenhar algumas pistas.
É um filme de palavras, certo, entre outras coisas: como o francês Alain Resnais em Marguerite Duras? Jean-Luc Godard fez não há muito seu caleidoscópio: um livro de imagens. Faz mais tempo o inglês Peter Greenaway rebuscou a literatura feita pintura nos corpos das pessoas; deu em cinema este filme-livro barroco. Sang-soo despoja a imagem para erigir a palavra; não sei se cabe instar em Éric Rohmer, o cineasta da palavra por excelência, o despojamento em um de seus limites. A perspectiva é compreender que os processos estéticos orientais se passam diferentemente.
P.S.: I. As cores. O filme é rodado em rigoroso preto-e-branco; o próprio diretor assina a fotografia. Só a penúltima sequência do filme se dá em cores, com a imagem digital angulosa e deformada, como se fosse um sonho, a atriz Kim Minhee colhendo flores e passeando num local idílico, seria o sonho que a personagem teria pouco antes, pois estava bêbada e capotara sobre uma mesa durante uma conversa com outras pessoas.
II. O filme dentro do filme. Na sequência entre a cena da bebedeira e as cenas em cores, se introduz uma sequência em que a personagem da atriz é deixada sozinha para ver na sala de projeção o filme da romancista. Após as cenas em cores, as que fecham o filme mostram a atriz depois da projeção, um pouco como acordando da embriaguez, algo como se tivesse sonhado. O que sonhou, materializando em cinema? Seu passeio carregando flores? Ou que havia um filme da romancista de que ela participou e que agora vira? Ou esta aspiração à vida do cinema de Sang-soo não passou duma miragem, uma irrealidade sonhada?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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