O Desmesurado em Coppola: Questao de Metodo
O ponto de partida do filme de Coppola eh a novela O Coracao das Trevas (1902), escrito em ingles pelo polon?s Joseph Conrad
Lá pela parte final de Apocalypse now (1979/2001/2019), a obra-prima do americano Francis Ford Coppola, o Capitão Villard (Martin Sheen), questionado pelo Coronel Kurtz (Marlon Brando, em poucas e escurecidas aparições no filme) sobre o que teriam dito do método dele, Kurtz, pois Villard responde, seco: “Não vejo método algum, senhor.” Kurtz seria a criatura que faz as coisas ao sabor do instinto, não há como analisá-lo racionalmente. A narrativa do filme de Coppola, desde o primeiro momento no fim dos anos 70 (147 minutos), depois na versão Redux de 2001 (196 minutos) e agora em 2019 no que o realizador batizou “final cult” (182 minutos), é um pouco à semelhança desta personagem esquiva e medonha: desgovernada. Não tem o filme, fisicamente, um método; mas tem uma gestação interior do artista Coppola —constante, precisa mesmo— que gera o método ausente. Neste aspecto, todas as alterações, inserções de cenas, retiradas de cenas ou um remodelar de montagem feitas até agora, e provavelmente as que o cineasta enquanto vivo se propuser fazer, não alteram a essência fílmica de Apocalypse now: a transformação, pela grandiloquência formal, do instinto guerreiro do homem numa certa estética que transcende os conceitos. O único evento, neste momento, que pode diminuir algo do conceito de filme-impacto desta realização é sua visão nas telas pequenas; quando se puder ver/rever esta versão “final cult” nas telas grandes dos cinemas, a dimensão de grandeza do filme se assentará melhor; mesmo assim, a tela pequena traz diminuição da força do filme-impacto, mas não a destrói: o fascínio instala-se.
O ponto de partida do filme de Coppola é a novela O coração das trevas (1902), escrito em inglês pelo polonês Joseph Conrad. Diz-se que no fim dos anos 60 John Milius escreveu o roteiro que ainda seria o esqueleto utilizado depois no filme feito, passando a ação do livro de Conrad do Congo da virada de século para o Vietnã da guerra asiática na década de 60. Coppola seria inicialmente só o produtor, mas acabou assumindo todo o projeto. Foi alterando as coisas. Aquilo que talvez Milius imaginasse como um filme de guerra de ação se converteu no teor da demência estética que é hoje Apocalypse now. Coppola metamorfoseia a guerra vietnamita numa estética: a estética do delírio. Ele próprio confessa que uma de suas inspirações foi Aguirre, a cólera dos deuses (1972), do alemão Werner Herzog. O rio, o barco, um homem obsessivo guiando alguns outros: a Amazônia de Herzog, o rio asiático no lugar do rio Amazonas, dois artistas (Herzog e Coppola) que trazem uma inevitável visão colonialista para o Terceiro Mundo. Mas se Herzog, especialmente em seus primeiros filmes, como Aguirre, adotava uma linguagem à margem, Coppola se insere na indústria; por mais delirantes e à deriva que sejam suas formas, elas lhe permitem estar dentro dos conceitos de espetáculo da indústria americana de cinema. No entanto, Coppola é um artista superior: que sai muito do chão.
Na plástica que se desgoverna no filme, a fotografia do italiano Vittorio Storaro é fundamental. Certas sequências com os voos rasantes dos helicópteros, os barcos espalhados na água, a cor das águas inventada pela fotografia, a cor do céu amarelado do sol (também uma cor nova e original) elevam Apocalypse now a uma relação pictórica com o cinema: um quadro. Coppola vale-se da música altissonante de Richard Wagner. E faz Brando recitar, na escuridão dos planos em que a câmara o vislumbra sob o olhar tensamente hipnótico de Sheen, o poema “Os homens ocos”, de T.S. Eliot. Da miscelânea cultural, a estética da belicosidade do homem. O cinema complementa a pintura, a poesia.
Sabemos também que um dos grandes achados de Apocalypse now é aquela cena em que Brando aspira, isto mesmo, aspira, não propriamente diz, as famosas palavras reiterativas escritas por Conrad: “O horror! O horror!” Os vocábulos parecem não ter materialidade física: são como emanações. Já anotara Conrad em seu livro: “como o primeiro sussurro de um vendaval em formação”. É um pouco como se tudo o que Coppola filmou antes de chegar ali fosse uma ponte para estar ali: extrair aqueles vocábulos murmurados —que parecem atravessar uma caverna chocando-se com as paredes escuras— de um ator-estrela como Brando para tal filme.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br