Despindo a Doenca

Susan Sontag, ao analisar a questao das doen?as no imaginario, ve o uso delas como s?mbolos

09/07/2022 12:33 Por Eron Duarte Fagundes
Despindo a Doenca

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Em dois livros a ensaísta americana Susan Sontag utilizou com brilho seu cérebro literário para desfazer os mitos do imaginário sobre doenças nas sociedades humanas. Nos anos 70, Susan foi acometida de câncer, submeteu-se a longos tratamentos, sobreviveu e sua experiência lhe rendeu Doença como metáfora (Illness as metaphor; 1978); cerebral e investigativa, Susan busca destapar o que se oculta na linguagem que usamos para as doenças ao longo dos séculos: a tuberculose no século XIX, o câncer no século XX. Ela começa seu livro usando metáfora para atacar as metáforas doentias: “A doença é uma zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirem só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.” A doença como passaporte não deixa de ser um signo linguístico articulado com criatividade por Susan, uma escritora; mas Doença como metáfora visita várias enfermidades do homem para ver como o homem se dispõe um tanto fantasiosamente diante de fatos de doença, talvez prejudicando a própria essência que é ver a doença como doença.

“Foi igualmente possível, mediante fantasias sobre a tuberculose, estetizar a morte.” “Tristeza e tuberculose tornaram-se sinônimos.” “Tão bem estabelecido era o clichê que ligava a tuberculose à criatividade que, no fim do século XIX, um crítico sugeriu que o progressivo desaparecimento da tuberculose era o responsável pelo declínio que se observava na literatura e nas artes.” Cética, agnóstica mesmo, Susan olha com desconfiança qualquer interpretação da doença fora dos padrões materiais em que ela se instala. Da tuberculose ela passou à loucura: “A exemplo da tuberculose, a loucura é uma espécie de exílio. A metáfora da viagem psíquica é um prolongamento da ideia romântica da viagem associada à tuberculose.” Vai também à sífilis, e estabelece um estudo comparado das doenças: “Enquanto a sífilis era vista como uma doença contraída passivamente, uma desgraça de todo involuntária, a tuberculose foi no passado, como o câncer é hoje, vista como uma patologia de energia, uma doença da vontade.”

Susan, ao analisar a questão das doenças no imaginário, vê o uso delas como símbolos, muitas vezes, morais, como algo que se esgotará com o tempo: a doença não dá tréguas, mas sua linguagem tem prazo de vencimento. “A metáfora do câncer se tornará obsoleta, eu prevejo, muito antes que estejam solucionados os problemas que ela reflete de modo tão vivaz.” Despida a doença de seus artifícios, Susan parece apostar numa reflexão em que o corpo tem de ser tratado como corpo; ela não esconde seu incômodo diante do psicossomatismo que, parece, é o que predomina nos dias de hoje: a enfermidade nasceria na mente, que no ser humano é fonte de linguagens e imaginários.

Dez anos depois deste seu ensaio sobre a doença, Susan escreveu Aids e suas metáforas (1988), dando seu pontapé inicial assim: “Relendo agora Doença como metáfora, pensei:” E vai revelando sobre suas percepções duma doença que naquele fim dos anos 80 ainda era obscura e, o que importa, mortal. Susan pegou ainda, em seu tempo, este enfermiço coletivo que era a aids. E que, enfim, mais que qualquer outra doença do passado, serviu de introdução aos neomoralistas de plantão. “A metáfora dá forma à visão de uma doença particularmente temida.” Sem dispor de todos os dados científicos e médicos que hoje temos sobre a aids, Susan navega com sua inteligência pelo pântano daquela que talvez seja a grande doença de seu tempo. “A peste á a principal metáfora através da qual a epidemia da aids é compreendida.” E Susan vai além: reflete sobre o termo vírus, vindo da área médica, no universo da informática; o vírus do computador é uma metáfora do vírus médico. Separar a linguagem que usamos da doença que experimentamos é um dos esforços da ensaísta; e ela o faz com os usos de todas as armas de seu racionalismo cético.

Se Susan faleceu em 2004 do câncer que a atacara nos anos 70 e ficara por décadas à espreita na chegada da velhice, estivesse viva nestas quadras da pandemia do coronavírus (a Covid-19), teria muito o que refletir e desmascarar. Aquilo que a aids provocou nos anos 80 se assemelha em algum grau a esta nossa experiência com o enfermiço internacional, ainda que a realidade e as formas das doenças sejam muito diferentes. O que permanece é o imaginário para com estas ações sobre o corpo. Sobre aids e epidemia, Susan anota: “No caso de uma epidemia em câmara lenta, essas mesmas precauções ganham vida própria. Passam a fazer parte dos costumes da sociedade, em vez de ser apenas práticas adotadas durante um breve período de emergência, e em seguida abandonadas.” E mais: “As pessoas circulam em número sem precedentes, E as doenças também.” Não parece que a estudiosa americana nos está falando hoje, ao pé do ouvido, sobre nosso cotidiano na segunda década do século XXI? Ferina como poucos analistas, Susan compreende: “Afirma-se que o que está em jogo é a sobrevivência da nação, da sociedade civilizada, do próprio mundo —tradicionais justificativas para a repressão.” O vírus vem, parece dizer Susan, temos de combatê-lo com a medicina; mas lado a lado ela empreende um périplo para desmistificar outro tipo de doença (eis a metáfora), o uso da linguagem que mascara a realidade doentia. Não é algo tão simples fazer o que ela pretende; mas vale muito acompanhá-la nesta aventura do saber que questiona e se questiona, que está sempre pronta para o embate áspero com a realidade. Pena que Susan morreu: as pessoas morrem. O jogo tem de continuar sem Susan na cabeça dos leitores.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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