Sobrevivendo ao Masculino

A realizacao da americana Hittman acompanha a trajetoria cheia de espinhos de Autumn

02/10/2020 14:14 Por Eron Duarte Fagundes
Sobrevivendo ao Masculino

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No começo de Nunca raramente às vezes sempre (Never rarely sometimes always; 2020), de Eliza Hittman, uma jovem canta num palco, trata-se dum show noturno para uma plateia de jovens; um rapaz grita “vadia!”, e esconde seu rosto e oculta seus lábios na multidão anônima, a cantora constrange-se, pausa, mas logo segue cantando, à medida que avança a canção as hesitações de voz e expressão facial da garota intercalam a vontade de apresentar-se e o desejo de fugir para dentro de seu canto canto, que vai continuar um pouco sem rumo, um pouco necessário. O show é o início do filme, mas é um momento à parte na construção da narrativa, a parte da narrativa que vai mais interessar à reflexão do espectador; a cantora que abre o descortinar de imagens é uma cantora de ocasião e divertimento, pois o que ocupa sua vida e seu trabalho (e também de sua prima) é ser caixa de supermercado. Estas duas personagens (a menina que se apresenta ao espectador num clube noturno nas imagens iniciais e sua prima acompanhante e confidente) é que vão costurar os nervos temáticos e dramáticos deste filme de rara magnitude.

A realização da americana Hittman acompanha a trajetória cheia de espinhos de Autumn, em magnífica composição de Sidney Flanigan; ela engravidou e decide fazer um aborto; então ela e sua prima Skylar (Talia Ryder, que faz um belo contraponto ao tipo físico e psicológico de sua parceira de cena, distanciada e um pouco atemorizada Autumn, singela e desenvolta Skylar) empreendem a viagem a Nova Iorque em busca da clínica de aborto. Esta viagem com objetivo bastante claro e prático é também uma viagem de conhecimento humano, de autoconhecimento das duas jovens personagens, que se orientam e se desorientam ao sabor das coisas. Em todos os passos de Autumn e depois acompanhada da prima o filme marca a situação territorial de duas garotas confusas e sem saber muito o que fazer diante do totalitarismo sexual dos machos imposto muito pela estrutura social secular; esforçar-se por sobreviver num meio de cartas mais ou menos delimitadas é o que podem fazer, Skylar parece um pouco mais segura, Autumn exibe suas inseguranças, reforçadas por seu próprio estado, a gravidez não desejada. É importante, neste filme, a direção duma mulher, que para além disto conhece bem seu ofício de cineasta, e que garotas estejam nos papéis que importam, proporcionando autenticidade a todas as observações que assomam em cena: esta cumplicidade da fala cinematográfica que chega dolorosamente ao lugar de escuta, ainda que ali possa estar um espectador masculino para lidar com seu universo de culpas.

Os advérbios que compõem o título do filme nascem das respostas que devem ser dadas às perguntas feitas pela assistente social da clínica de aborto a que chega Autumn para o procedimento; numa voz doce, de compaixão feminina entre o profissional e o afetivo, ela vai questionando a menina que quer abortar e, nas questões finais, lhe dá as opções de respostas para as perguntas derradeiras: ela deve responder somente “nunca, ou raramente, ou às vezes, ou sempre”. O liame complexo destes advérbios e suas inter-relações semânticas e sintáticas dão muito do tom amargamente feminista deste trabalho ímpar e impiedoso. De alguma forma, esta obra de Eliza Hittman é uma resposta cinematográfica mais secreta e subterrânea e mesmo complexa a outros dois belos olhares femininos sobre o mundo vistos nos cinemas recentemente: Retratos de uma jovem em chamas (2019), da francesa Céline Sciamma, e Adoráveis mulheres (2019), da americana Greta Gerwig.

No fim do filme, a exaustão emocional da personagem central se materializa naquela visão que temos dela dentro do ônibus, que a traz de volta para casa: ela fecha os olhos, como adormecendo, numa expressão melancólica, à janela do veículo diante da qual passa a paisagem de retorno. No fim de Perdida (1975), filme brasileiro de Carlos Alberto Prates Correia, a personagem central —uma empregada doméstica no Brasil autoritário e machista ao modo dos anos 70— está também à janela de um ônibus, e faz o caminho inverso: sai de seu rincão para a cidade grande, Belo Horizonte, fugindo da opressão em busca de melhores dias. São projetos femininos diferentes assentados em cenários que se assemelham, à janela de um veículo. Talvez, longinquamente, estes projetos das personagens se aproximem na compreensão por parte duma mulher das lutas, cotidianas e tenazes, que terá de empreender para sobreviver no mundo construído, a ferro e fogo, para os machos de sempre, cínicos e violentos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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