Homens e Mulheres Biblicos na Pena de Scliar
Todas as caracteristicas da arte de Sclair sao aprofundadas no premiado romance Manual da paixao solitaria (2008)
O ficcionista gaúcho Moacyr Scliar é um ente literário tão clássico quanto moderno. O classicismo de sua literatura vem do rigor de suas construções frasais, de sua absoluta falta de concessão para com o desleixo de escrever que muitas vezes se aplica hoje em dia, às expensas das influências jornalísticas. O lado moderno de sua ficção, o que lhe dá uma fisionomia identificada com a contemporaneidade, é uma ironia que desliza pelo texto, um humor judaico quase secreto (não tão secreto quanto aquele do escritor tcheco Franz Kafka) e que é trabalhado com um hedonismo de contar história de que Scliar detém sua receita pessoal. Todas as características da arte de Sclair são aprofundadas no premiado romance Manual da paixão solitária (2008), talvez o mais agudo e belo dentre os que compôs desde Cenas da vida minúscula (1991).
Em Manual da paixão solitária Scliar junta novamente seu encanto com os enredos bíblicos (míticos, religiosos e parabólicos) a uma herança onde os ancestrais costumes judaicos perpassam os interstícios narrativos. A história do patriarca Judá, de seus três diferentes filhos e da maneira como estes quatro homens se relacionam diferentemente com a tão vigorosa quanto atormentada jovem Tamar é recontada por Scliar com uma graça transcendente. Na abertura do romance a ação está centrada no Congresso de Estudos Bíblicos e ali podemos topar, pela boca de uma personagem, o historiador José Domício Ferraz, uma suma da história que depois Scliar desenvolverá sob a forma de narrativa. A antecipação do enredo não tira o encanto do romance de Scliar, pois é no desenvolvimento estilístico de Manual da paixão solitária que o leitor deparará as áreas de interesse do texto. Um dos artifícios que Scliar usa com uma forma tão intensa quanto transparente é apresentar seu romance em duas partes narradas na primeira pessoa por personagens (pontos de vista) diferentes; valendo-se da invenção dum Congresso de Estudos Bíblicos, o autor encena primeiramente com o professor Haroldo Veiga de Assis a história vista por Shelá, o caçula dos filhos de Judá, depois reencena a mesma história (ou quase) pela boca da professora Diana Medeiros (ex-aluna de Haroldo) que se converte em Tamar. Na cena final de Manual da paixão solitária o professor e a professora estão na cama; depois do sexo, de que a narrativa apanha a expressão final do orgasmo (“Oh, Deus. Oh, Deus.”), começam a conversar; no último parágrafo da narrativa de Tamar, se fala de arte e paixão, alude-se mesmo à paixão solitária, fala-se de Deus como um solitário (um solitário apaixonado?) e aquelas exclamações que encerram o texto de Tamar (“Não é mesmo, Deus? Hein? Deus?”) rimam com o início da cena de cama que aparece na página seguinte; se na evocação bíblica a referência a Deus vai como uma seta metafísica, na cena contemporânea o Deus do momento parece ser mesmo o sexo, o mesmo sexo que torturou a vida de Tamar.
“Ouvi tudo em silêncio, em tenso mas fascinado silêncio. Por causa da história, mas também porque era Tamar quem narrava a história, e Tamar me hipnotizava, como a serpente hipnotiza o pássaro.” Num recurso de simbologia extraído da própria narrativa, pode-se dizer que o contar de Scliar hipnotiza o leitor como a serpente ao pássaro.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br