O Sarcasmo Intelectual de Hannah

Hannah Arendt foi uma pensadora germânica. E seu germanismo diz tudo: lucidez assombrosa, propriamente diabólica na ferocidade de seu raciocínio

29/10/2018 00:10 Por Eron Duarte Fagundes
O Sarcasmo Intelectual de Hannah

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Hannah Arendt foi uma pensadora germânica. E seu germanismo diz tudo: lucidez assombrosa, propriamente diabólica na ferocidade de seu raciocínio. Duas outras  extraordinárias mulheres se juntaram para a ressurreição de Hanna: duas mulheres alemãs, a atriz Barbara Sukowa e a diretora de cinema Margarethe Von Trotta. Ambas estão em sua melhor forma no filme Hannah Arendt (2012): Barbara exibe sua grandeza de intérprete conciliando  na ação dramática os tiques intelectuais e cotidianos da escritora com grande eficiência e levando o que seria uma caricatura à profundidade; e Margarethe entrega ao observador uma direção sinuosa e criativa que quase se equipara, como uma iluminação duma história humana, a seu mais belo filme, o pouco conhecido Irmãs, ou a balança da felicidade (1979).

Hanna Arendt centra-se no episódio mais popular da vida desta aluna aplicada de Martin Heidegger (de quem foi amante na adolescência, num episódio descrito como processo de lembrança no filme da Von Trotta): os tempos em que Hannah foi contratada pela revista americana The New Yorker para cobrir o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann e foi escrevendo artigos que depois geraram o livro Eichmann em Jerusalém (1963); estes artigos traziam algumas inquietações de Hannah, como a responsabilidade burocrática de líderes judeus nos extermínios perpetrados em campos de concentração nazista, que tumultuaram o sentido do coitadismo judaico presente então e até nossos dias. Margarethe usa dos bárbaros elementos interpretativos de sua atriz central para caracterizar, com precisão, o sarcasmo intelectual de sua personagem; na verdade, parece dizer Von Trotta, toda atividade intelectual tende ao sarcasmo: quando Hannah senta com seu editor na revista, e ele, depois de frases iniciais elogiosas, começa a pôr algumas minhocas no texto dela, a pensadora expõe seu contraponto com um sorriso malévolo e também uma certa maldade dentro do cérebro, como se estivesse estabelecendo o abismo entre os interesses, o da lucidez crítica dela (uma pensadora transcendente e para-temporal) e o de um pequeno mundo de mesquinharias e não-me-toques dele (um editor de revista).

Hannah Arendt adota um rigor clássico profundo no uso duma dramaturgia cinematográfica reflexiva que parece um pouco uma ressurreição do cinema que se fazia, politicamente, nas décadas de 70 e 80, um comprometimento formal e temático radical. Entre os filmes recentes que igualmente buscaram estas alternativas meio fora de moda me ocorrem Katyn (2006), do polonês Andrzej Wajda, e A espiã (2006), a volta à sua Holanda natal de Paul Verhoeven. Mas, apesar de suas altíssimas qualidades, estes dois filmes não logram chegar a extrair as energias fílmicas que há em Hannah Arendt: talvez lhes falte esta demência para expor em imagens um documentário do raciocínio (por favor, pense-se em Alexander Kluge, um alemão, claro) que somente uma alma teutônica seria capaz de materializar.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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