Machado de Assis, um Romance

Quase tudo já se disse sobre Machado Assis. No entanto, o mistério das transformações de sua literatura a partir dos anos 80 do século XIX permanece

04/02/2017 21:23 Por Eron Duarte Fagundes
Machado de Assis, um Romance

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Quase tudo já se disse sobre Machado Assis. No entanto, o mistério das transformações de sua literatura a partir dos anos 80 do século XIX permanece. O escritor mineiro Silviano Santiago se dispôs ao desafio de reencontrar algumas ideias sobre Machado. Mesmo encontrando o olhar desconfiado do leitor que pensa: já se disse tudo sobre Machado de Assis. No entanto, em se tratando dum pensador literário sempre novo como Santiago, o leitor, ao menos o leitor que se sofistica um pouco nas coisas da literatura, se deixa seduzir pela ideia exposta nos anúncios sobre o livro. Entre a desconfiança e a sedução, dá o leitor os primeiros passos na leitura.

Machado (2016) é o trabalho que sucede, na obra de Santiago, a Mil rosas roubadas (2014), que era um romance biográfico da vida dum amigo do autor e recriava um certo mundo intelectual do miolo do século XX. Em seu novo impulso estético o autor mineiro pretende, a partir da figura do maior nome de nossas letras, “o mestre de todos nós”, como se afirma lá pelo fim da narrativa, recriar o universo humano e intelectual brasileiro do início do século XX. Os quatro últimos anos de vida de Machado de Assis: 1904-1908, entre os romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), ambos coordenados pelo espírito do conselheiro Aires, um ente que contempla a vida, como Machado de Assis em seus anos finais. O fato é que tudo é surpreendente neste novo livro do homem de letras mineiro. À medida que avançamos pelas páginas, já não vale dizer que já vimos tudo sobre Machado de Assis. Como no texto da francesa Marguerite Duras para o filme Hiroshima, meu amor (1959), de Alain Resnais, podemos dizer, diante de Machado, de Silviano Santiago: nada vimos ainda em Machado de Assis. A mão paciente, informada, interessada, pesquisada do professor e escritor mineiro nos propõe uma nova dinâmica para enxergar Machado de Assis. Embora ainda estejamos diante do texto dum crítico e historiador da literatura, como nas linhas de formosura enviesada de Mil rosas roubadas, há um passo para a frente em que as engrenagens parecem adquirir um movimento vital, não se sabe donde vem, ou talvez se saiba, venha possivelmente desta retumbante identidade entre Silviano Santiago e Machado de Assis.

No capítulo II, o narrador de Machado, que é um romance (está na capa), embora se travista muita vez de crônica histórica, ensaio ou reportagem livre, anota: “Transfiguro-me. Sou o outro sendo eu. Sou o tomo V da correspondência de Machado de Assis: 1905-1908.” O núcleo estrutural de Machado são jogos simétricos, construídos com grande habilidade por Santiago. Uma destas simetrias é uma data. Machado de Assis falece em 29 de setembro de 1908. “quando a Fortuna julgar chegado o momento de dar continuidade à bela vida naufragada no dia 29 de setembro de 1908, no chalé do Cosme Velho.” Silviano Santiago nasce no interior de Minas Gerais  em 29 de setembro de 1936. “Na madrugada daquele dia [29.09.08], tendo à cabeceira o dr. Miguel Couto, os olhos de Machado de Assis moribundo se fecham em profundo recolhimento. Reabrem-se em 1936 no choro motivado pela palmada dada na bundinha sanguínea do bebê pela parteira precavida e desconhecida.” Reencarnação? “Simetrias não são fortuitas e menos  fortuitas ainda são as coincidências das personalidades em trama inesperada.”

As simetrias narrativas são muitas e todas têm sua intensidade ao longo de Machado. Em todo centro simétrico, esta personagem tão brasileira quanto avessa ao provincianismo brasileiro: o escritor Machado de Assis. Aquele que todos os que gostavam de literatura naquele tempo gostariam de ser, mas faltou-lhes a inspiração original, temática e linguística. Santiago começa por Carlos de Laet, que um dia socorreu na rua a Machado de Assis em ataque epiléptico. O Laet de Santiago é um espírito culto que inveja os achados de Machado. A simetria vai à França: Maxime du Camp retrata o romancista Gustave Flaubert; Laet lê o ensaio; as associações Camp-Flaubert, Laet-Machado povoam a mente do leitor, o Laet de antigamente, nós hoje, mas no fundo este sentimento de admiração e inveja é comum em todos nós. E só se pode vencer quando, como Silviano Santiago, se produz um romance de ensaio como Machado. “Je suis tout te pardonner; sauf d’être ce que tu es; sauf que je ne suis pas ce que tu es; sauf que ‘je’ ne suis pas ‘toi’.”, murmura Maxime ao ouvido de Gustave nas entranhas da eternidade, “posso perdoar-te tudo; salvo seres quem és; salvo que não sou quem és; salvo que eu não sou tu.”.

No entanto, de todas as simetrias a central e mais curiosa, pois lá pelas tantas deixa de ser simetria para ser uma simples relação narrativa antes de voltar a um enviesado voo simétrico, é a que se dá entre Machado de Assis e um escritor obscuro muito mais jovem, Mário de Alencar, filho biológico do romancista cearense José de Alencar e no fundo um filho espiritual de Machado, o que gerou na história uma fofoca (nunca comprovada) de que Mário era filho biológico de Machado, fruto duma relação clandestina de Machado com a mulher de seu amigo José de Alencar. Esta simetria entre Mário e Machado, realçada porque ambos sofriam de epilepsia, remete à velha amizade e admiração que Machado cultivou pelo pai de Mário, o ficcionista José de Alencar; segundo se insinua em Machado esta simetria Alencar-Machado indicava um rumo da literatura do protagonista do romance de Santiago cuja transformação teria sido ocasionada pelo contato com o pensamento cosmopolita e viajado de Joaquim Nabuco; as críticas de Nabuco a Alencar ocupam boa parte das páginas que se  encaminham para o fecho da narrativa em Machado. “Machado opta finalmente por Nabuco. Sabe-o marinheiro e lavrador-de-metáforas na busca infatigável da representação artística universal.” Mas nenhuma destas simetrias, mesmo influentes no verbo de nosso escritor, tem a grandeza da escrita original de Machado de Assis, parece sempre lembrar o escritor Silviano Santiago. “O mulato Machado de Assis não representa o Brasil imperial. Mas o escritor carioca sempre viajará ao estrangeiro, mas pelos navios da leitura. Dessas impressões de viagem retira o material que empresta aos elaborados personagens complexos que inventa.”

Fazendo o cruzamento de várias personagens históricas pelo cenário carioca de uma maneira muito particular, quer dizer, à sua maneira, de Silviano Santiago, o romancista (ufa!) mineiro propõe um novo e sanguíneo aprendizado cultural literário. Do professor decadente Laet (“Debruça-se sobre a amurada da avenida Beira-Mar. E admira a bela paisagem de cartão-postal. Descortina-se a baía de Guanabara em todo o seu esplendor.”) ao inquieto e antecipador Nabuco (“Segunda viagem de Nabuco à Europa... A viagem é longa. Lê livros e mais livros da literatura francesa. O navio atrasa nas Canárias.”), Santiago, como um encenador em palavras, move as peças históricas como se fossem suas, com liberdade de ficcionista, mas sem perder o pé de suas pesquisas. Cioso das letras nacionais, é curioso que, ao referir um médico da época, especialista em epilepsia, o baiano Afrânio Peixoto, Santiago não lembra ao leitor que ele foi também escritor, apesar de estar hoje bastante esquecido, pois seu texto de recuperação de interior tem artifícios alencarianos desconjuntados do ponto de vista narrativo. Esquecimento? De propósito? Nada que tenha grande interesse nas simetrias fascinantes de Machado: somente uma lembrança curiosa deste leitor que aqui escreve.

Mais importante que esta minha evocação de leitor de coisas vetustas, é a reação narrativa à contemplação por Machado da tela do pintor Rafael, “Transfiguração”. “A morte e escrita literária são o desvanecimento progressivo da presença da mulher na vida do homem e da criação artística.” Que relação estranha há entre escrever e morrer! Um dos trechos finais de Texaco (1992), de Patrick Chamoiseau, escritor negro martinicano (lembremos: Machado era mulato), chama-se “écrire-mourir” (“escrever-morrer”); e ali a protagonista, uma alma simétrica do narrador de Chamoiseau, anota: “Dès que mon Esternome se mit à me fournir les mots, j’eus le sentiment de la mort. Chacune de ses phrases (récuperée dans ma mémoire, inscrite dans um cahier) l’eloignait de moi. Les cahiers s’accumulant, j’eus l’impression qu’ils l’enterraient à nouveau.” (“Desde que meu pai Esternome se pôs a fornecer-me as palavras, tive o sentimento da morte. Cada uma de suas frases (recuperada na memória, inscrita num caderno) o afastava de mim. Acumulando-se os cadernos, tive a impressão que o enterravam de novo.”). Assim, eu-leitor de Machado posso edificar, ao lado das simetrias que me põe diante Silviano Santiago, as simetrias de minhas leituras. E, por exemplo, ver em Santiago e em Chamoiseau, ainda que tratem de coisas muito antigas, “do tempo do rei”, uma forma de narrar em romance que só poderia existir contemporaneamente aos romancistas que veem cinema. Ao ler o manuscrito de Memorial de Aires, Santiago imagina Machado em seu gabinete de trabalho: “Trata-se de uma espécie de copião (no sentido cinematográfico do termo). O copião permanece como que à espera da montagem definitiva pelo autor.” Em Texaco, numa espécie de pós-escrito, chamado “Ressurreição”, Chamoiseau lamenta um pouco ter de fazer somente sua criatura falar e depois ordenar toda a fala, gostaria de “j’eus un instant envie de la filmer car il m’était de plus en plus sensible que l’audio-visuel offrait de nouvelles chances à l’oraliture” (“tive por um instante o desejo de a filmar pois me era cada vez mais sensível que o audiovisual oferecia novas oportunidades à escritura oral.”). A última simetria: os escritores como diretores de palavras: dirigimos as palavras, que são cenários, personagens, sentimentos, ideias.

 

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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