O Ficcionista e o Outro

A Hora da Estrela, o filme, apara certas arestas protuberantes de A Hora da Estrela, o livro

11/11/2014 10:20 Por Eron Duarte Fagundes
O Ficcionista e o Outro

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A hora da estrela (1977) foi o último texto publicado pela escritora brasileira Clarice Lispector. É uma novela em que Clarice, habituada a falar de personagens burguesas e bem nascidas como ela, topou com a invenção de Macabéa, uma nordestina com dificuldade de ser e comunicar-se, uma simplória que às vezes chegava ao irritante para o mundo em torno mas uma criatura da qual Clarice se aproxima com medo e carinho. Pela primeira vez a ficcionista tem o desafio de criar uma figura tão diferente de si. Que faz Clarice? Inventa um artifício narrativo: inventa um narrador, Rodrigo S.M., alguém que se criou no Nordeste e que portanto deve conhecer os mecanismos que levam ao difícil interior de Macabéa; mas na verdade Rodrigo é feito da pele literária de Clarice, daí as dificuldades que as longas enrolações estéticas das páginas iniciais da narrativa expõem, dificuldades que permanecem sempre no texto, o narrador Rodrigo-Clarice interferindo na ação (a não-ação da desglamurizada Macabéa), questionando-se o tempo todo, navegando no escuro. Tudo isto dá uma aparência a A hora da estrela um pouco diversa do que ocorre nos outros livros de Clarice; os fatos, que sempre incomodaram as abstrações de Clarice, vêm exigir sua presença, tomar espaço. Mas nada que impeça o habitual mecanismo criativo-linguístico da autora. É bem verdade que, influenciada pela alma primitiva de sua personagem, Clarice é muitas vezes mais simples e mais direta que sem seus textos anteriores; mas Clarice lida bem com a simplicidade e nunca deixa de criar e alçar-se. Clarice transforma a ingenuidade de Macabéa numa outra coisa.

[A cineasta Suzana Amaral apanhou os excertos espalhados pelo narrador de Clarice ao longo da novela A hora da estrela e montou com os pequenos fatos (ali a custo derramados por Clarice) um filme de beleza delicada, o A hora da estrela (1985) de Suzana é feito de imagens belamente rigorosas e trata com o singelo-belo certas relações entre a dura vida real e a fantasia das pessoas que vivem esta dura vida real; são poucas as vezes em que a narrativa de Suzana —como no fantasioso final em que Macabéa morre mas ao mesmo tempo ressurge como um anjo, contrastando com o final de Clarice, mais áspero e veraz— perde o pé e se espatifa num romantismo desengonçado, emulando o interior precário de Macabéa. Muitas vezes, longe do melodrama que alguns acusaram, A hora da estrela de Suzana evoca sintomas do francês Robert Bresson.]

Clarice/Rodrigo derrama-se nas páginas de A hora da estrela. “É claro que a história é verdadeira inventada.” Clarice viu uma nordestina na rua, inventou seu narrador Rodrigo, reinventou-se, perseguiu uma história, melhor, o processo desta história. É o que Clarice sempre fez. A hora da estrela é a história de Macabéa, uma nordestina que era nada, mas é por cima de tudo a história dos problemas de contar a história deste nada que é Macabéa. “Existe a quem falte o delicado essencial.” Clarice não quer perder a delicadeza, mesmo na situação de Rodrigo, sua verdade inventada. Mas, mudando-se em Rodrigo, Clarice também diz: “não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade.” Clarice vai, subterraneamente, discutindo o que pode haver de artificioso em seu próprio processo de aproximação à Macabéa.

[Escreve o crítico de cinema  José Carlos Avellar: “No filme de Suzana Amaral, a história de Macabéa é contada por um narrador mais próximo daquele inventado por Graciliano para falar da família de retirantes do que do Rodrigo proposto por Clarice para contar A hora da estrela.” Isto é, parece dizer que Suzana eliminou o narrador intermediário de Clarice e utilizou a câmara clássica, que não interfere entre as personagens. Sem as digressões metalinguísticas do início do livro, o filme já apõe aos créditos iniciais os sons da Rádio Relógio, aludidos no livro e alargados no filme. Anota Jean-Claude Bernardet, outro crítico de cinema: “O filme de Jorge Furtado fica mais próximo da estrutura do romance que a adaptação de Suzana Amaral, que conta a história de Macabéa, pois Furtado-Casé-Arraes assumem a instância narrativa do escritor fictício imaginado por Clarice Lispector.” A hora da estrela, o filme, apara certas arestas protuberantes de A hora da estrela, o livro, ao mesmo tempo em que perde um certo rigor analítico que enfim também não interessa ao filme. Mas não se pode negar ao filme de Suzana um olhar crítico sutil —a despeito de melancólico e melodramático— sobre a figura desgraciosa de Macabéa; este olhar nasce de um estudado e plástico ponto de vista da câmara, amiúde bressoniano como já se disse.]

Sob a aparência ligeira e descontraída, a novela de Clarice é uma reflexão profunda sobre a tentativa de ser no Brasil. E esta tentativa de ser não poderia ser melhor espelhada do que numa personagem marginalizada, mulher e nordestina. Macabéa é datilógrafa e seu namorado Olímpico é metalúrgico. Sua história acontece às vésperas da erupção social dos movimentos metalúrgicos paulistas no fim dos anos 70, quando os abafados trabalhadores começaram a desabafar diante do regime político que então se carcomia. Intuição de artista? Clarice é uma artista do estético e da linguagem, os fatos sociais sempre foram aleatórios em sua ficção. A hora da estrela se aproxima perigosamente destes fatos. Mas o leitor não tem como deixar de associar e meditar sobre estas associações, a relação de um livro com seu tempo histórico.

[Parece que a diretora Suzana Amaral persegue as personagens interioranas, simplórias, esquisitas em suas ações tão minúsculas e sem perspectivas. Em seu segundo filme, Suzana foi novamente à literatura e topou alguém parecido com Macabéa. A prima Biela inventada pelo escritor mineiro Autran Dourado em Uma vida em segredo (1964) é parente da Macabéa de Clarice; talvez não se perceba inicialmente porque o estilo narrativo de Dourado, mais minucioso ou realista ou fechado, difere das formas abertas de Clarice, mas a visão dos dois filmes de Suzana (o filme Uma vida em segredo é de 2002) forçam esta aproximação. Biela e Macabéa podem igualmente despertar a comiseração do espectador dos dois filmes, porém Suzana, rigorosa e hábil, foge inteiramente ao miserabilismo formal de uma certa produção brasileira; igualmente os cuidados plásticos da fotografia e da câmara de Edgar Moura remetem a um ente estético que se afasta da linguagem da granulação suja de O homem que virou suco (1981), de João Batista de Andrade, onde José Dumont, o Olímpico de A hora da estrela, vive os duplos nordestinos. A crítica norte-americana Pauline Kael compara o filme de Suzana com Umberto D (1951), do italiano Vittorio De Sica; a não ser por tangentes superficiais, as associações da grande crítica são incovincentes; o que há em A hora da estrela é a pauta dum realismo interior brasileiro (formal e temático) que não caberia ser lançado para dentro do neorrealismo italiano, a fragilidade objetiva de Umberto difere muito dos medos e inconstâncias estranhas de Macabéa.]

“—Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.

—É para eu não me doer.

—Como é que é? Hein? Você se dói?

—Eu me dôo o tempo todo.”

No diálogo Clarice brinca habilmente com a conjugação “dôo”, que Macabéa desloca para o verbo doer; como o leitor sabe que “dôo” é também, e preferencialmente, do verbo doar e em face do temperamento submisso de Macabéa, a ironia se estabelece. No filme de Suzana este diálogo é reproduzido, mas é tão breve que fica difícil para o espectador captar aquilo que no livro é mestria pura de Clarice. Assim, ver filme e livro juntos, lê-los em conjunto, amar tanto o literário quanto o cinematográfico, neste caso pode ser extraordinariamente produtivo.

Outro exemplo. A cena da cartomante. No livro a cena se dá exclusivamente com Macabéa, embora, por referência do diálogo, se saiba que se trata duma cartomante de Glória, a colega de serviço de Macabéa. No filme, meia hora antes do desfecho, Suzana inclui uma seqüência de Glória na cartomante, tomando do livro algumas indicações, quase como uma continuação da seqüência com Glória. E de cartomantes a literatura brasileira tem alguns textos clássicos. No início de Esaú e Jacó (1904), romance de Machado de Assis, duas irmãs, uma delas grávida de gêmeos, visita uma cartomante, que no texto Machado chama “adivinha”. Machado escreveu um conto chamado A cartomante, uma versão de triângulo amoroso e adultério mais explícita e violenta que o romance Dom Casmurro (1900). Na peça A falecida (1954) o dramaturgo Nélson Rodrigues abre com sua protagonista indo a uma cartomante. Como a Madame Carlota, de Clarice (“Olhe, a polícia não deixa pôr cartas, acha que estou explorando os outros, mas, como eu lhe disse, nem a polícia consegue desbancar Jesus”), a Madame Crisálida de Nélson também tem suas broncas com a polícia (“É preciso estar de olho. A polícia não é sopa. Outro dia fui em cana.”). E, pensando nos filmes de Suzana (extraído do texto de Clarice e de Leon Hirszman (A falecida, 1965, a partir do texto de Nélson), por que não interligar a personagem da jovem Fernanda Montenegro em Leon (a burguesa que vai ter com a cartomante) e a madurona Fernanda em Suzana (interpretando uma própria matreira cartomante que atende a protagonista no final)? Por aí se passam os caminhos do cinema e da literatura brasileiros.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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