Um Surpreendente Brilho Narrativo

Pode-se dizer que O Lobo Atrás da Porta (2013), o primeiro filme longo dirigido por Fernando Coimbra, é um oásis dentro do cinema

09/06/2014 09:49 Da Redação
Um Surpreendente Brilho Narrativo

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Pode-se dizer que O lobo atrás da porta (2013), o primeiro filme longo dirigido por Fernando Coimbra, é um oásis dentro do cinema. Tem uma natureza quase indefinível em seu cruzamento de climas: drama erótico veladamente perverso, aventura sentimental quase oculta, corte criminal distanciado, um submerso olhar de comédia negra, tudo sublinhado por uma visão estratosférica de certas naturezas humanas. É indefinível sua natureza e meio melancólicas suas características de oásis cinematográfico, como, há algumas décadas, acontecia com outro filme brasileiro, o esquecido (já em sua época) Ato de violência (1980), de Eduardo Escorel. Como no filme de Escorel, também no de Coimbra vemos uma trama de banalidade penal esforçando-se por disfarçar aquilo que lhe é essencial, um olhar turvo sobre o comportamento humano. Equilibrando-se com notável precisão entre os dois olhares, o simples e o complexo, O lobo atrás da porta busca a conquista do público tanto pela atenção quanto pela sensibilidade.

O realizador do filme tem o autêntico senso de cinema para propor justamente este equilíbrio referido: tornar simples e claro o liame que vai entre o enredo de amor e as tensões psíquico-fílmicas. É com seu domínio do espaço cinematográfico e da imagem que deste espaço nasce que o cineasta propõe ao espectador o prazer de ver uma história que se desenvolve vivamente diante dos olhos. Todas as coisas em cena têm uma marcação devida. Diz o diretor que a elaboração deste filme, seus roteiros e desroteiros, as experiências intermediárias com os filmes curtos, o projeto final de produção foi um parto lento, desde os anos 90, desde os tempos de estudante de cinema; o embrião teria sido a história (que ele leu) de um crime no Rio dos anos 60, mas este inspirado em fato real, vê-se ao longo da realização, é somente um pretexto para uma experiência estética, que oscila claramente entre o naturalismo e o irrealismo, gerando uma outra coisa, que é uma espécie de fotografia do aludido oásis do início deste texto. A sensação de uma narrativa integral desde suas orelhas se evidencia à medida que o filme avança, sem perturbações formais senão aquelas de ordem moral que inquietam o observador. As coisas vêm a pelo no momento certo, no gesto cinematográfico dado.

O filme vai abrir com o sequestro da menina, filha de um casal de classe média no Rio. Ao chegar à creche (cena inicial), a responsável informa à estupefata mãe que outra mulher veio buscar a criança. Levados para a delegacia, os pais da menina e a senhora da creche, a teia vai desenvolver-se em densos flashbacks, que reconstituem o possível plano do sequestro feito por duas mulheres, a aproximação amorosa entre o pai da menina e a sequestradora, o desenvolvimento de um triângulo amoroso trivial tratado de maneira cinematograficamente nada trivial. Depois do instante inicial, o sequestro é praticamente esquecido pela narrativa. As tensões da trama passam a ser dadas pelas dificuldades do relacionamento do casal (os pais da sequestrada) e o aparecimento na vida do homem duma mulher mais jovem e todavia de sinuosa experiência (a futura sequestradora). De quando em quando, é claro, o sequestro volta à mente do espectador, cuja memória do crime é ativada pela intersecção, entre os longos flashbacks, de algumas sequências do interrogatório na polícia. O sequestro vai voltar com força é no final, havendo o desfecho duro em que a criminosa revela que de fato matou a menina. A longa caminhada da mulher com a pequena vítima por um descampado do subúrbio carioca, até o local em que ela atirará contra a garotinha, é acompanhada por uma câmara tão delirantemente móvel quanto perturbadora em seus movimentos e jogos visuais. As palavras finais da assassina, dizendo que não se arrepende do que fez, nem espera perdão, algo como “fiz e está feito, é minha natureza”, remetem ao espanto da oração que, na boca do criminoso, encerrava Ato de violência: “Eu não sei por que matei as duas mulheres”. Lembrando: no filme de Escorel um homem, interpretado por Nuno Leal Maia, matara duas prostitutas no intervalo de dois anos.

Leandra Leal, a grande atriz de A ostra e o vento (1997), de Walter Lima Jr., e Nome próprio (2007), de Murilo Salles, é a forte consciência narrativa de O lobo atrás da porta. O desenvolvimento dramático que se impõe a atriz na composição de sua personagem permite-nos evocar um verso de antigo poeta francês, Alfred de Musset, “vê-la morrer, envenenada”, uma criatura envenenada por seu próprio veneno, que tem um tempo muito longo para sofrer (de novo Musset: “on a trop lontemps à souffrir”), como se anuncia no assustador inferno final da situação da protagonista de O lobo atrás da porta.

 Brilhando também nas relações do som com a imagem (uma cena do cotidiano bruscamente interrompida pelo som de um trem), o filme de Coimbra conta com as nuanças enviesadas da fotografia de Lula Carvalho (pensemos nesta fotografia para sentir melhor o peso atmosférico da longa caminhada da criminosa com a vítima até o momento do crime) para acrescer a seu grau de tensão policial e metafísica os elementos visuais; esta tensão que sai da imagem é na verdade a suma dos próprios rumos cinematográficos da narrativa.

 

(e-mail: eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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