Depois de Proust, o Tempo. E o Cinema.
Os Anos tem tudo da experiencia de viver - e de viver a literatura - de sua autora, a romancista francesa Annie Erneaux
Annie Erneaux empreende uma corrida contra as ferrugens do tempo em Os anos (Les années; 2021). “Não haverá ‘eu’ neste livro que ela considera uma espécie de autobiografia impessoal —apenas pronomes impessoais e o uso de ‘nós’— como se estivesse narrando os dias passados.” A narrativa é, sim, numa disfarçada primeira pessoa; o disfarce pelo uso da terceira pessoa ou dum plural substitutivo. A personagem central é no fundo quem narra: a partir do ponto-de-vista, de seu discurso indireto. Há uma gramática do coletivo em Os anos. Uma criatura é o signo de uma época, uma época determina o íntimo duma criatura.
Os anos tem tudo da experiência de viver — e de viver a literatura— de sua autora, a romancista francesa Annie Erneaux. Mas tem também a construção ficcional de um tempo histórico. O tempo: o século XX do cinema, o século XX de Jean-Paul Sartre. É o tempo depois de Proust, que inaugurou o século XX transformando o refinamento clássico numa gigantesca memória. A memória de Os anos é bem outra. Tem Sartre. E tem o cinema. As referências cinematográficas ao longo das evocações do livro são muitas e variadas. Os cortes de imposição narrativa de Erneaux puxam algo dos aspectos de planos soltos do cinema, planos que devemos montar para contar uma história ou dar algumas impressões.
Um olhar sobre a essência. “Já tinha virado hábito ver os sexos aparecendo nas telas, mas prendíamos a respiração, por medo de deixar escapar a emoção, quando o Marlon Brando sodomizava a Maria Schneider.” A essência e seu lugar no tempo. “O discurso do prazer tomava conta de tudo. Era preciso ter prazer lendo, escrevendo, tomando banho, defecando. Esta era a fidelidade das atividades humanas.”
As contradições da sociedade do século XX transparecem em várias citações. Algumas: pela vista do filme. “Agora a moda era a leveza, o ‘piscar de olhos’. Não existia mais indignação moral. Nos divertíamos lendo os letreiros de As boqueteiras e A calcinha molhada, não perdíamos nenhuma apresentação de Jean-Louis Borg fazendo papel de ‘louco’. Agora a proibição de A religiosa parecia inconcebível. Mas era difícil confessar que tínhamos ficado abalados ao ver a cena de Corações loucos em que Patrick Dewaere mama o leite de uma mulher, no lugar do bebê dela.” Erneaux capta todas as crueldades e incongruências de seu tempo, em Os anos.
Desde o início, citando Tchékhov (“Seremos esquecidos”) e na oração que descortina a ação romanesca (“Todas as imagens vão desaparecer”), Annie Erneaux empreende uma busca fugidia contra o desaparecimento, fiando-se, apesar de tudo, que as palavras possam dar sobrevida às imagens da memória. “História familiar e história coletiva são uma única coisa.” Depois de Proust, longe de Proust, estamos tornando ao tempo. O tempo do século do cinema, uma estética literária condicionada muito pelos filmes (ou assemelhados) que deparamos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br