O Mais Belo Momento de Proust no Cinema

O italiano Luchino Visconti e o americano Joseph Losey sonharam com filmar Marcel Proust, mas Percy Adlon...

21/05/2023 03:53 Por Eron Duarte Fagundes
O Mais Belo Momento de Proust no Cinema

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O italiano Luchino Visconti e o americano Joseph Losey sonharam com filmar Marcel Proust; eram projetos totalizantes e ambiciosos que tropeçaram no desinteresse dos produtores e na viabilidade comercial. Volker Schlöndorff (alemão), Chantal Akerman (francesa), Raoul Ruiz (chileno afrancesado) são alguns realizadores que se esforçaram por dar ao espectador uma parte do grandioso e agudo universo proustiano. Mas, passados tantos anos de cinema e literatura na vida deste comentarista, crê-se que ninguém tenha logrado transformar em imagens em movimento a alma do romancista francês com tanta profundidade e senso  estético quanto o alemão Percy Adlon em Céleste (Céleste; 1980). Curiosamente seu roteiro não toma por base nenhum trecho do romance-rio de Proust, como o fizeram Schlörndorff, Akerman e Ruiz; Adlon vai a um livro de memórias de Céleste Albaret, a última criada de Proust, onde ela relata os momentos finais do escritor, entre a conclusão de seu livro e a chegada da morte, a palavra FIM após o ponto final de sua obra e a tarde da morte num quarto em penumbras, diante de Céleste, o irmão Robert Proust e o médico. No entanto, parece bastante visível que Adlon foi um leitor de Proust, seu filme tem os ares duma transposição do espírito proustiano para o cinema, que é o que autenticamente interessa, o espírito de um homem. Eu vira o filme numa mostra internacional de cinema, em Porto Alegre, em maio de 1984; retornar a ele, pelos caminhos da internet, trinta e nove anos depois, reafirma sua excelência e sua sobrevivência artística.

A narrativa proustiana de Adlon abre com a figura da criada preparando o café. Quando entra no quarto, com a bandeja da refeição matinal, as sombras que preenchem o cenário tornam quase tudo pouco visível, o próprio Proust na primeira imagem dá pouco acesso visual ao observador, sua voz tossida e fugidia nos indica um homem esquivo e enfermiço. Nas sequências iniciais a introdução é dada pela recitação narrativa de Céleste Albaret. Com o passar dos momentos, este texto narrativo vai-se tornando raro, para mergulhar o assistente nas relações entre duas pessoas distantes que se completam naqueles instantes, o escritor burguês Marcel Proust e sua empregada final, Céleste Albaret. Proust é esmiuçado em sua obsessão literária, certo; mas este abismo místico do indivíduo (a arte é uma forma de vida) é contraposto às necessidades cotidianas daquele espírito torturado, as coisas triviais caracterizadas em Céleste. Há um plano que aparece duas vezes na montagem do filme. O ator Jürgen Arndt (um Proust inigualável) aparece desleixado, como quem acabou de sair do leito, caminha para a câmara de forma esquisita e diz: “Eu sou Marcel Proust. De roupão e despenteado.” Adlon se aproxima deste Proust: um homem como os outros. Mas o torna um espírito do cinema, aproximando-se também do Proust artista, único. É pela montagem exacerbada, feita a partir de planos introspectivos e compassados, que Adlon chega, indelevelmente, por seu ritmo de construção de imagens, aos conceitos temporais a que Proust chegou em suas páginas.

A atriz alemã Eva Mattes, então conhecida por seus trabalhos com Werner Herzog (com quem mantinha na época um relacionamento) e Rainer Werner Fassbinder, corporifica a complexidade desta personagem que, saindo do povo habitual, teve influência decisiva sobre o processo estético final de Proust. Céleste Albaret é um nome que aparece em alguns trechos do romance de Proust; mas as características da Céleste do romance não são as mesmas da Céleste real, esta tem mais afinidades com outra personagem do romance, Françoise; este jogo de nomes e identidades é uma das pistas narrativas enviesadas do romancista. Adlon não entra nesta questão. Ele centra seu olhar fílmico nas relações entre a criada e o autor, meditando na importância destas relações na edificação do romance, se seria possível o romance ser o que é sem Céleste. A troca de olhares entre Céleste e Proust no momento da morte dele capta este achado de intenções, valendo-se duma sequência de planos fixos de extremo rigor que fazem o cruzamento dos olhares. No momento antes da morte (ou, quem sabe, na hora em que morre), Céleste cortou dois nacos de cabelo de Proust, um naco deu a Robert Proust, outro ficou para ela, olhando enigmaticamente para a objetiva da câmara.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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