O romance A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, começa por seis travessões. Os travessões parecem estar no lugar de coisas que estariam antes de começar a narrativa. É um uso particular da escritora: os travessões estão no lugar das reticências. Depois vêm as palavras da narradora: “estou procurando, estou procurando”. Estou: primeira pessoa, ignorante de si mesma e de tudo, oposta inteiramente ao narrador onisciente, uma primeira pessoa ainda mais volátil que a primeira pessoa de sempre. Que procura este ser que se move na narrativa? “Estou tentando entender.” Procurar, tentar: o vago, o indizível. Clarice é a voz da arte indizível. É a rainha das abstrações na literatura brasileira. Ela toma um enredo banal: uma mulher de classe alta, depois que uma empregada vai embora e antes de chegar uma nova empregada, se mete a arrumar a casa e, susto dos sustos, dá com uma barata. É impressionante o que Clarice faz deste quase-nada: uma verdadeira força de linguagem, mas uma linguagem-pensamento, uma energia verbal viva e ativa. A imposição do delirante feminino como poucas vezes se viu em qualquer literatura. O grito diante da barata. “De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito.” Sintaxe: “a existência dela me existia”, de intransitivo para transitivo, direto (me fazia existir) ou indireto (existia em mim). “A vida se me é, eu não entendo o que digo”, vai completando no fim de seu transtorno de palavras, revelando em sua procura lá do início a inquietação sintática constante (“a vida se me é”) e uma busca de estudar o indizível (“não entendo o que digo”). Novamente, para conclusão, tornam os seis travessões que abriram o livro. É assim —única em sua linguagem— a paixão de G.H. de Clarice Lispector.

Luiz Fernando Carvalho é um diretor à parte dentro do cinema brasileiro. À parte seu jeito de fazer os cruzamentos (e fusões) entre a palavra e a imagem, criando novas relações da literatura com o cinema, a edificação dum cinema literário profundamente cinematográfico. Há um esplendor destas relações ao longo de A paixão segundo G.H. (2023), uma ousada versão de um livro infilmável, a obra-prima de Clarice Lispector publicada em 1964, algo semelhante ao que o cineasta já fizera com o texto de Raduan Nassar em Lavoura arcaica (2001), Carvalho vale-se muito do texto hipnótico e provocativo de Clarice, o texto banha as sinuosas e densas imagens trazidas por Carvalho, a banda sonora é outro elemento dramatúrgico da cena elaborada por Carvalho. A estranheza se introduz nas imagens que vão abrindo o véu narrativo e começam como o romance de Clarice, a procura, a procura. Diante das câmaras em tempo integral, a atriz Maria Fernanda Cândido tem seu êxtase; uma sequência máxima é aquela em que a atriz, por meio de sua personagem, leva a emoção às últimas ao chorar diante da perplexidade criativa do universo verbal de Clarice, o feminino se instala, em Clarice, na personagem vinda do livro, na personagem na pele de Maria Fernanda, na própria pele de Maria Fernanda; uma verdadeira ascese cinematográfica. O grito diante da barata, que foi abafado ou é ilusão no livro, surge materializado, num corte brusco entre a imagem (rápida) e o som (forte e ríspido), no filme, como um sonho claustrofóbico. “Por que a Bíblia se ocupou dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos?” Carvalho insere imagens entrelineares (revistas, jornais, impressos) que remetem à época em que foi publicado o livro de Clarice, 1964, ditadura militar. Clarice, em sua obra, simula a demência pelo verbo. Carvalho alude à demência de sempre e àquela brasileira dos anos, o autoritarismo político, mesmo numa história mais metafísica que sociológica. É bom superpor o livro sobre o filme, o filme sobre o livro, misturá-los. O texto de Clarice está muito sobre as imagens de Carvalho. Maria Fernanda, usada quase sempre in extremis, delira com a palavra de Clarice para um cineasta cuja arte se casa bem com ambos, a atriz e a escritora.

(O filme de Carvalho foi visto no Festival do Rio, em outubro de 2023, ao mesmo tempo em que se acabava a releitura do romance de Clarice. O texto é o resultado das fusões entre a literatura e o cinema.)

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)