Eu reputo, eu retruco, eu reluto

Uma outra parte do necrológio a Ariano Suassuna. Texto crítico do filme que Luiz Fernando Carvalho extraiu do romanção A Pedra do Reino

25/07/2014 10:29 Por Eron Fagundes
Eu reputo, eu retruco, eu reluto

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Prólogo: Uma outra parte do necrológio a Ariano Suassuna. Texto crítico do filme que Luiz Fernando Carvalho extraiu do romanção A pedra do reino.

Filme exagerado em sua concepção estética, A pedra do reino (2007), não logra admitir uma atitude moderada do espectador. Seu provocativo desequilíbrio formal vai jogar cada observador nos extremos: quem o ama, ama-o desesperada e ilogicamente, não admitindo reservas a este amor; quem o detesta, vai apresentar uma relação de igual violência, mas em sentido oposto. Depois de vê-lo, dá para compreender por que as reações das pessoas ao filme são extremadas e se contradizem umas às outras: desde sua radicalização de filmar, a obra quase impõe ao assistente esta atitude inquieta, inconformada, de ódio ou paixão.

A realização nasceu primeiramente como uma minissérie exibida na Rede Globo de Televisão de 12.06.07 a 16.06.07; se disse então que aquela loucura estilística era demasiado brutal para o público de televisão, educado pela singeleza das telenovelas e por programas que utilizam outro tipo de maquiagem e linguagem. Parece que no cinema não deverá, também, ser muito numeroso o público disposto a percorrer as mais de três horas de aventuras visuais que o diretor Luiz Fernando Carvalho dispôs diante das câmaras. De qualquer maneira para o verdadeiro cinéfilo, o confronto é inevitável, resguardando-se a liberdade de cada um de deleitar-se com o filme ou maldizer dele; todo o mundo sabe de antemão que se trata duma obra que impõe algumas dificuldades de assimilação e o que verdadeiramente vai importar na relação do observador com a fita é o quanto destes obstáculos estamos dispostos a saltar em face do possível prazer que a fruição das imagens possa dar-nos.

Carvalho foi buscar em Romance d’a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1970; o barroquismo medieval da escrita está desde o título), do escritor paraibano Ariano Vilar Suassuna, matéria para sua produção. A forma de aproximação de Carvalho ao universo de Suassuna difere bastante da que adotou Guel Arraes em O auto da compadecida (peça de 1959, filme de 1999), também uma produção da Rede Globo inicialmente gravada para a televisão; os aspectos galhofeiros do texto poético de Suassuna, que em Arraes obedecem à comicidade direta e de fácil aceitação pela platéia, em Carvalho têm o mesmo padrão estético de Suassuna e, principalmente, se contorcem em tragicidade desesperançada, simulando muitas vezes uma atualização do cinema do baiano Glauber Rocha. Carvalho vai pelo mesmo caminho de seu filme anterior, Lavoura arcaica (2001), quando se atirou a um texto do paulista Raduan Nassar; em A pedra do reino ocorre novamente o mesmo efeito: a imagem brilha tanto quanto a palavra; talvez nenhum outro realizador brasileiro saiba celebrar tão bem, e com tanta originalidade, este casamento da palavra e da imagem: o texto arcaizante, adjetivado e altaneiro de Suassuna desfila diante de nós lado a lado com arabescos visuais que captam os tipos excêntricos do Nordeste brasileiro; sangue e violência cruzam pelas frases como pelas imagens, elevando A pedra do reino a um gongorismo enviesado e irônico que poderá arrebatar o espectador dependendo de seu grau de afinidade com uma experimentação tão avançada quanto esta de Luiz Fernando Carvalho.

Pode-se dizer que A pedra do reino (olhemos um pouco o filme, outro tanto o mundo literário de Suassuna) implanta em pleno Nordeste criaturas que parecem extraídas da Idade Média européia. O dramaturgo português Gil Vicente e seus autos caracteristicamente populares são a sombra trabalhada por Suassuna. O nome do protagonista, Dom Pedro Diniz Quaderna, que é o narrador, em magnífica criação de Irandhir Santos em volúpia, verbo e maquiagem, traz em si nome de rei e de poeta lusos: Dom Diniz. Se Gil Vicente está em Suassuna, muita coisa daquilo que Glauber Rocha faz em Deus e o diabo na terra do sol (1964; o tom de certos gritos místicos de alguns discursadores) e Terra em transe (1967; a agressividade às vezes política, às vezes instintiva) baixa em A pedra do reino. Assim se fecha o círculo que vai da literatura ao cinema, de Suassuna a Carvalho, de Gil Vicente a Glauber. Outra coisa que havia em Lavoura arcaica e retorna em A pedra do reino é a obsessão do incesto, aqui numa carnalidade desenfreada entre um pai e uma filha.

Sobrevém-me uma comparação com outra produção contemporânea da Globo, Primo Basílio (2007), de Daniel Filho, que todavia caiu direto nos cinemas sem passar pelo estágio de minissérie, embora em 1988 Daniel tenha feito para a televisão algo baseado no romance de Eça de Queiroz (mas era outra coisa). É claro que o filme de Daniel, mesmo que tenha lá suas intenções artísticas, visa muito ao público. Não é o caso de A pedra do reino, que seleciona o público e torna rarefeito. Ambos os filmes têm seus adversários intransigentes. Criticam a Daniel pelas concessões televisivas, dizem que filma Eça como quem grava uma telenovela (o que só em parte é verdade, pois há uma elegância formal que por via de regra a telenovela não exibe). Repudiam em Carvalho o desprezo absoluto pelo público comum, chocando-se com o fato de o meio televisivo permitir a existência deste arabesco, insinuando que a Rede queira contrabalançar sua mediocridade com a inserção de Suassuna-Carvalho para adquirir prestígio cultural. No fundo das duas reações, as facilidades que temos para nos rebelar contra o monopólio de comunicações que a Globo se esforça por impor ao país. Neste ódio (justo?) certas produções que mereceriam maior atenção muitas vezes pagam o pato.

Como diz o narrador diante do Juiz, “eu reputo, eu retruco, eu reluto.” A pedra do reino vai ser reputado: delírio contagiante no sertão ou hermetismo doido (o próprio narrador define sua epopéia sertaneja como uma história mitológica, romance-enigmático). Vai ser retrucado: por que tudo isto? Vai levar o espectador a relutar: que fazer diante de tanta doidice? Mas quem o vir não tem como ficar indiferente.

P.S.: P.S.: Em minha coluna de cinemania de 18.07.14, tratando do filme Gigolô americano, dei o estilista Giorgio Armani como falecido. Não sei de onde tirei a notícia, mas ela é falsa. Armani está vivo e completou 80 anos recentemente, como noticiou o jornal francês Le Monde. “Figure incontournable de la mode italienne, le créateur, qui a lancé sa marque en 1974, célèbre ses 80 ans, vendredi 11 juillet. L'occasion de revenir en images sur quelques-unes de ses plus belles collections.” Desculpem os admiradores de Armani e os amantes da verdade: me passei.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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