Leituras do Outono
A Cabeca Mulitipla de Juremir Machado da Silva pulsa agora em duas novelas gemeas diferentes, reunidas num volume


A cabeça múltipla de Juremir Machado da Silva pulsa agora em duas novelas gêmeas diferentes, reunidas num volume.
Cante o hino antes de entrar (2024) começa na questão política. “A extrema direita voltou a presidir o Brasil na eleição de novembro, em meio a mais uma epidemia de dengue no país.” Mas o que vem a seguir é a crise estético-existencial de Francisco, a personagem central. Certo: há muita contemporaneidade nas referências que se espalham ao longo do texto; fala-se em Donald Trump, em Javier Milei, nas mídias, nos partidos políticos conhecidos, nos arcaísmos morais que retornam na sociedade brasileira, nos contrapontos de Anita e Luisa Sonsa. Uma alusão cultural básica é a paixão de Francisco pela literatura do francês Michel Houellebecq, mais uma contemporaneidade, dado o sucesso internacional e mesmo midiático de Houellebecq; mas Francisco faz com as letras de Houellebecq o que este autor fez com Joris Karl-Huysmans, esmiuçando, Houelebecq, uma literatura do passado, talvez hoje não tão visitada, ao menos aqui, o que não surpreende, em face das exigências que o texto de Huysmans traz. No entanto: “Francisco adorava Houellebecq e seus anit-heróis, mas não simpatizava com Jean des Esseintes, que lhe parecia insuportavelmente afetado.” As coisas não são simples em sua lógica. “Dir-se-ia que tentava se agarrar a um anacoluto para se salvar”. No fim, Francisco morre. Sua morte, está escrito na lápide, diz o narrador, é uma “extensão do domínio da luta”, título dum romance de Houellebecq, que marcou o falecido até ali, no túmulo. Do lado de fora, talvez possamos ouvir o hino que os patriotas cantam antes de entrar. Cante o hino antes de entrar é uma novela que se caracteriza pela construção das personagens a partir de suas ideias, algo que Juremir já fizera em Cai a noite sobre Palomas (1995) e aqui parece um retorno feito sempre de paixão e brilho.
A grande ideia (2024) é ainda mais sarcástico. Não traz tanta contemporaneidade quanto a novela anterior, embora aqui e ali aluda a coisas ultramodernas, como Elon Musk. Começa pela aposentadoria dum advogado, Miguel Rogério, cuja frase que abre a história é “acabou para mim”. Não é um “acabou a vida”, mas “acabou a vida profissional”. Sim: “os primeiros dias de aposentadoria foram estranhos e ásperos”. Aposentada, a personagem entrega-se à veleidade literária: “Agora, sob o sol da manhã de setembro, estava ali, aposentado, livre, pronto, para ser o que sempre quisera: um escritor.” Restava: descobrir a grande ideia para fazer sua literatura. Passam-se as páginas, e a grande ideia de Miguel se vai convertendo numa miragem. Como Francisco, Miguel morre no fim: aquele afogado por suas dúvidas, este por seu diletantismo, ou ambos por uma crise ou desespero que os aproxima. “Com a morte do autor, o livro ainda não saiu”.
Pelo autor de Vendo sonhar em Palomas (2024), poemas, e Derrotados e triunfantes (2023), pequenas narrativas ou aforismos, dois tensos e descarnados momentos duma literatura tão cerebral quanto sanguíneo em Cante o hino antes de entrar e A grande ideia. Para se ler neste outono, entre chuvas e tardes de sol, por aposentados e outros seres.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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